1
O relógio da sala ainda bate as
horas. Tem exatamente cento e dez anos de existência e ainda bate as horas.
Levantou com certa lentidão da rede, largou o jornal sobre a bancada e fez uma
careta. Dia chato. Foi até a cozinha, tomou um copo de água e olhou da janela o
estacionamento quase vazio. Laio detestava esse estacionamento, pensou, e
voltou ao escritório para ler o resto do jornal. De passagem pegou uma pera
rosada e cheirosa.
Voltou à cozinha minutos depois
para fazer um café e pensar, no banco de madeira comprido e pesado, onde se
sentia mais magra e costumava meditar sentada, em posição fetal, sentindo o
cheiro vindo da cafeteira italiana que ele lhe dera no ano passado. O tédio
tinha ido embora e alguma coisa muito promissora fervilhava dentro dela como
uma juventude – transviada, vá lá – um ímpeto qualquer de entusiasmo. Apoiava a
ponta do nariz sobre o joelho dourado, ideias cruzando o pensamento. Maquinar
coisas não era seu forte, mas naquele momento estava prestes a fechar um plano
perfeito e digno de um bandido com muitos anos de prática. A imagem de Pôncio
lhe veio nítida, clara; quase ouvia a voz dele dizendo: tudo que você merecia era perder até o ar, morrer de parada
respiratória, e tinha rido na cara dele de puro ódio. A primeira coisa que
lhe ocorreu naquele momento foi que Pôncio passava por um surto de
homossexualidade. Até então nunca o julgara assim. Difícil de acreditar, mas
enfim, nada é impossível.
Riu para si mesma, porque também
tinha pensado num interesse tardio do jornalista por ela. Fosse lá como fosse,
Pôncio era o principal responsável pelo fim de seu casamento com Laio e isso
não é coisa que se perdoe. Enquanto tomava café, o telefone tocou e Líria se
distraiu numa conversa sem consequências durante mais de meia hora. Por trás do
riso e dos gestos do momento, no entanto, a ideia continuava acesa como uma
nova razão de viver.
Laio trabalhava ainda na
companhia que provavelmente só iria deixar quando a morte ou a idade o tirassem
de lá. Ali tinha crescido na profissão – era engenheiro de telecomunicações – e
estava na antepenúltima posição da hierarquia. Empregara vinte e cinco anos de
sua vida na carreira, desde o concurso de que saíra primeiro colocado até
aquela sala com grandes painéis de vidro, uma mesa de reunião aparatosa e os
abajures de aço escovado. Havia flores na mesa de centro, reproduções de
pintores célebres pelas paredes e uma estatueta de marfim, presente de Líria,
quando completaram cinco anos de casados. Antes de tudo que os tinha atropelado
meses atrás.
— Você não sabe o que está
dizendo – ela respondera, no início, negando sempre.
Quase convencido, Laio pensou em
deixar a questão esfriar antes de tomar qualquer decisão. Afinal, tudo não
passava mesmo de um telefonema anônimo. Mas dois dias depois do primeiro
embate, aquela acusação quase grosseira do amigo, não tinha entendido direito o
porquê da coisa toda, e Laio caiu numa tristeza muito próxima da depressão. –
Ele manda em você – Líria repetia em prantos, e isso foi antes que ela
começasse a acusá-lo de estar tendo um caso com o jornalista. – Você está
completamente louca – lembrava de ter dito, no auge da fúria, e de ter deixado
a marca dos dedos no rosto dela.
Quando caiu em si e avaliou a
situação, teve muita vergonha do que fizera. Não se perdoaria nunca e Líria
muito menos. Deu razão a ela, convenceu-se de que não havia saída senão deixar
que tudo caminhasse para o fim, mesmo depois de terem conversado com a cabeça
mais fria, do pedido de desculpas, das flores, da tristeza que ele não tentou
esconder. Estava disposto a ser um ex-marido exemplar, atento, amigo, mas a
decisão ainda não lhe parecia firme o suficiente e não entrariam com o pedido
de divórcio senão depois que Líria se declarasse cansada daquilo tudo, pedindo
que a deixasse livre para seguir sua vida. – Não quero mais ter que falar com
você a toda hora, quero me sentir eu mesma de novo. – Não tem volta? Tem
certeza? Não vai dar pra apagar tudo isso? – e ela apenas desviou os olhos e
avisou que tinha um compromisso dali a meia hora. – Líria, ainda não estou
certo... – Mas continua amigo daquele crápula.
Pronto. Pôncio era a pedreira no
fim do caminho. Talvez fosse o medo de parecer covarde. A incerteza quanto ao
que o outro tinha dito sobre ela. Ou então, quem sabe, a secreta corporação dos
machos funcionando de um jeito assim, subliminar, que o deixava inseguro e
incomodamente culpado de algo que não sabia o que era. Pôncio, até então isento
de toda dúvida, poupado mesmo daquela desconfiança mais secreta que não
respeita um irmão, o pai, seja quem for. Não se lembrava de alguém mais
confiável. O que o atormentava ainda era o motivo daquilo. Ainda não conversara
com ele depois, atordoado pelo tremor de terra que se desencadeara assim, de
surpresa. Não sabia se ainda era seu amigo, mas Líria sabia. Líria sabia tudo,
e era irritante, porque fazia sua culpa brilhar como um caco de vidro espetado
na carne.
O ruído do mar batendo nas pedras
chamou a atenção de Pôncio e o fez caminhar até a janela do escritório.
Alarmou-o um pouco a extensão da ressaca, a água lambendo a calçada e chegando
ao meio da avenida, atrapalhando o trânsito pesado que àquela hora rumava para
o centro da cidade. O tsunami passou-lhe pela cabeça, engolindo carros e
prédios, e imaginou seu quinto andar inundado, os móveis batendo uns nos outros
e uma banhista de fio dental jogada no meio da sala. Voltou para o computador e
acendeu o segundo cigarro do dia. Olhou a foto de Larissa, sua mulher, e virou
o retrado para que não o visse fumar. Tinha mentido, e ela acreditara; mas deixar
o cigarro ia ser uma batalha mais dura do que poderia parecer à primeira vista.
Ainda mais ansioso como estava, de viagem marcada justo para aquela tarde de
ventania. Por essas e outras achava a natureza a coisa mais besta que existe,
um dado perfeitamente dispensável na vida de um ser civilizado e operante, que
devia dispor de seu tempo sem maiores tropeços. Já chega o corre-corre
necessário para que se consiga algum avanço na vida.
Faltava fechar a coluna da
primeira edição do dia seguinte. Passava os olhos nas notícias do dia e a
chamada para a seção do final do primeiro caderno o fez parar. À medida que ia
lendo, uma ideia original – ou mais ou menos isso – foi surgindo. Pensou que
seria interessante ressuscitar aquela história trágica do estádio de futebol
que ruíra dez anos antes, quando exibia um show beneficente de cojuntos e
cantores famosos, e matou perto de mil pessoas, incluindo vários artistas, que
ganharam fama de quase mártires por conta disso. Quando mais não fosse, a
reconstituição podia render algum ensinamento para as autoridades de agora,
sempre negligentes com o Rio e sua população sofrida. Na época, ninguém soube
explicar bem o que havia causado o acidente. A perícia não atinara senão com
hipóteses que pareciam irreais – ferrugem e desgaste dos vergalhões já antigos,
cupim no cimento sem manutenção – mas nada ficou definitivamente provado.
A empresa construtora já não
existia, o estádio tinha mais de 50 anos e ninguém foi considerado culpado. Nem
ao menos se apontou um responsável de quem se pudessem cobrar as indenizações.
Os costumes civis ainda não haviam incorporado com tanta ênfase essa
mentalidade indenizatória das décadas seguintes, e raras vezes alguém se
lembrava de cobrá-las em situações do tipo. E quando isso acontecia, o reclamante
não teria tanta chance de ser bem-sucedido. A prefeitura alegava que o estádio
estava em bom estado, que não havia qualquer sinal de desgaste ou perigo à
vista. Tudo fora súbito, inesperado, sem dar tempo para que o povo esvaziasse o
lugar. Alegou-se vagamente um excesso de peso e movimento nas arquibancadas,
hipótese que terminou esquecida, diante da extensão do desastre. O número dos
mortos chocou a cidade, e o caso teve repercussões muito negativas fora do
Brasil. Isso também justificava uma revisão do episódio todo, que poderia valer
por uma tomada de consciência, uma catarse que soaria simpática à mídia de um
modo geral e ao estrangeiro em particular. Pelos seus cálculos, era um feito
jornalístico que, bem conduzido, podia mesmo lhe render algum prêmio ou ao
menos menções de mérito.
O diabo era começar. As provas,
se é que tinham existido, estavam enterradas com as vítimas, e duvidava que
alguém de algum modo ligado ao fato se prestasse a falar ou apontar testemunhas
e documentos. Seria preciso peregrinar pelas redações, arquivos e bibliotecas
em busca de artigos, entrevistas, reunir todas as notícias e notas dos jornais
e revistas da época. Uma lenha que, Pôncio sabia bem, não garantia retorno satisfatório
e talvez ainda fosse lhe arranjar algum inimigo insuspeitado, filho ou herdeiro
político de pessoas envolvidas na história.
Então lhe veio uma ideia que à
primeira vista cintilou em sua mente como um diamante de muitos quilates: ia
pedir a colaboração dos leitores. Há um grande número de pessoas ávidas de
evidência, para as quais aparecer no jornal – e até num livro, como estava em
seus planos – era uma perspectiva capaz de produzir verdadeiros milagres. No
caso do estádio, ele sabia, a notabilidade dos envolvidos seria limitada a um
breve espaço de tempo, mesmo que a campanha tivesse o êxito que ele desejava.
Mas o povo quase sempre anda insatisfeito com seus homens públicos. Haveria um
ambiente favorável a desenterrar culpados, mesmo de anos passados, apontar a
desídia dos governantes como uma tendência de nossos políticos e até do pessoal
do judiciário. É mexer com casa de marimbondo, mas pode render bons frutos,
além de algumas ferroadas.
Dirigiu-se eufórico ao computador
e redigiu uma coluna cheia de ardor cívico – que até precisou refrear um pouco,
porque hoje em dia ninguém acredita em arroubos de entusiasmo. Menos, Pôncio,
pensava enquanto seus dedos corriam céleres pelo teclado, menos. Concitou os
leitores (sabia que eram muitos) a contribuírem para a elucidação definitiva
daquele acontecimento, uma mancha na reputação da administração da cidade,
herança infausta (não, infausta não, ninguém sabe mais o que isso quer dizer)
herança sombria (sombria está na medida) que há décadas dá motivo a dúvidas
sobre as melhores intenções e possíveis virtudes de nossos governos municipais
e, de certa forma, estaduais, já que ninguém se preocupou em investigar a fundo
a questão, para tirar dela as possíveis lições.
Leu e releu, corrigiu aqui e ali,
tornou a ler e reler e colocou enfim o parágrafo final, que dizia: deixo meu
e-mail à disposição dos leitores para que contribuam com sua opinião sobre o
caso, detalhes que tenham ficado marcados em sua memória. Colaborem no
esclarecimento desse espisódio que até hoje nos envergonha e ajudem a evitar
que no futuro isso se repita e vitime, quem sabe, parentes ou amigos daqueles
que me leem ou os meus próprios. Nisso, podemos estar unidos. Se você que me lê
souber de algum detalhe, mesmo já ventilado na época, envie sua mensagem. Caso
não lembre de algum pormenor, fale de sua impressão e de como o caso repercutiu
entre seus parentes, amigos e conterrâneos. E se conhecer alguém ligado ao fato
– vítima, parente ou conhecido que tenha presenciado o acidente – não deixe de
relatar suas opiniões e os fatos de que se recorda. Vamos trabalhar em conjunto
e mais tarde teremos a alegria de ver o resultado de nossa pesquisa. Conto com
você, caro leitor, sem o qual um jornalista é apenas um cronista solitário.
2
Quando o relógio da sala bateu
duas horas, Líria despertou assustada e pulou do sofá. Não queria chegar
atrasada à reunião do departamento de RH. Passou no banheiro, deu um jeito nos
cabelos, refrescou o hálito e foi até o quarto para trocar a blusa meio
amassada. Batom dentro da bolsa, celular ligado e chave passada na porta,
entrou no carro e teve ainda que esperar que o porteiro atendesse o interfone.
Chegou com uma expressão serena,
talento de atriz herdado da mãe. Tomou seu lugar sem chamar a atenção do chefe
do departamento, sujeito difícil de lidar, e logo trocava ideias com o grupo
sobre datas e amenidades. Uma reunião de rotina, da qual não se podia esperar
resultado muito produtivo. Um acerto de contas inventado para mostrar serviço e
reafirmar o temperamento controlador do doutor Lamego. Pouco antes das quatro
horas estava de volta à sala do oitavo andar, onde a esperavam algumas
carteiras de trabalho e dois funcionários de ar entediado. Tinha almoçado em
casa, bem perto da empresa, e aproveitara para tirar um cochilo que acabou se
aprofundando num sono de quase hora e meia. Dormira muito mal à noite, pensando
nos detalhes do plano que pretendia pôr em prática imediatamente.
Eram mais ou menos cinco e
quarenta quando pegou de novo o jornal que começara a ler durante o café da
manhã. Abriu na segunda parte do primeiro caderno e lá estava a coluna de
Pôncio. A crônica tratava de outro assunto, mas no final, separada do resto do
texto, havia uma notinha reiterando o assunto da véspera e agradecendo aos
leitores que já se haviam manifestado. Líria riu discretamente e entrou no
correio eletrônico. Mas não digitou em seu próprio nome. Abriu nova conta e
redigiu uma mensagem longa sob o novo endereço, enviando-a a ponciojornal@jornal.com. A seguir
entrou em outro servidor de correio. Cadastrou mais alguns endereços com nomes
inventados e enviou novas mensagens. Estava contente com o resultado. Era hora
de voltar para casa, e o sentimento de algum dever cumprido enchia seu espírito
de alegria. Mas ainda havia muito a fazer.
Foi daquelas amizades que a gente
imagina sem fim. De antes de se casarem, bem antes. Passaram juntas no
vestibular e durante aquele mesmo ano conheceram Pôncio, já no final do curso,
estagiário do jornal onde estava até hoje. Laio viera depois, era um pouco mais
velho que elas. Líria olhou as fotos até que os olhos começaram a misturar as
imagens. Já no primeiro ano tinham se tornado inseparáveis. Jogou o álbum na
mesinha de centro e riu, enxugando os olhos, coisa fora de moda ter um álbum de
retratos tão careta. Mas sem ele, como iria rever as caras jovens e os olhos
brilhantes daqueles dias? As digitais mais recentes estavam no computador, mas
não pretendia perder tempo derramada sobre o passado que Pôncio – e Laio! –
tinham pisado daquele jeito.
Pensara em procurar a amiga,
Larissa devia ter alguma coisa a dizer a ela, mas pensou melhor e resolveu
esperar. Fez bem – Larissa ligou numa daquelas manhãs e combinaram almoçar
juntas. Tinha certa esperança nesse encontro e lhe deu alguma alegria vê-la
chegando. Logo no início a conversa girou sobre um nada-de-novo que fez sumir
qualquer veleidade de mudança de cara da história toda. Larissa sorria como
sempre, abraçou-a com o mesmo calor e beijou suas bochechas sem que ela
percebesse qualquer falsidade ou cautela. Mostrou uma blusa que acabara de
comprar, falou das crianças – um casal de poncinhos – e perguntou pela vida
dela como se tivesse chegado de Cancún ou de Paris. – Então você não sabe? –
Líria perguntou e logo se arrependeu, mas em seguida achou que era isso mesmo,
tinha que se abrir com a amiga como sempre, porque ser casada com aquele
estrupício não a tornava outra pessoa até segunda ordem.
Larissa a encarou cheia de
espanto. Como, divórcio? Vocês são um dos casais mais harmoniosos que eu
conheço, não acredito que estão... – Pois pode acreditar, e Líria não segurou o
choro dessa vez. Uma coisa ficou bem clara, no entanto: Larissa não sabia de
nada, a besta do Pôncio não lhe contara. Isso queria dizer duas coisas: que
além de mau caráter o cara era um dissimulado e que o casamento deles também
não ia nada bem. Deu algumas explicações esfarrapadas à amiga, que a consolou
como pode num momento daqueles. Depois lavou o rosto, despediu-se da outra, que
a tocava com o cuidado com que se toca um velhinho que parece prestes a
desmontar, e voltou ao trabalho.
Prezado senhor,
Creio que posso ser útil a seu
intento de conseguir novos dados e informações capazes de avançar, um mínimo
que seja, na elucidação da catástrofe que atingiu centenas de pessoas em 1998.
Passo então a lhe narrar, o mais minuciosamente possível, o que presenciei
durante aquele dia de triste memória para a cidade do Rio de Janeiro.
Estava eu ainda à procura de uma
parenta, que me avisara de sua intenção de assistir ao show daquela data. Como
não tivesse sucesso na busca meramente ocular, pensei em fazer uma chamada por
um dos alto-falantes instalados na parte superior do estádio. Fosse hoje,
naturalmente teria feito uma ligação pelo telefone celular, bem mais simples.
Mas não era esse o caso, tais aparelhos eram ainda pouco usados e volumosos,
pelo que muita gente os evitava. Dirigi-me então a uma das cabinas ocupadas por
vigias e seguranças a serviço dos astros, já então em plena apresentação. Nesse
exato momento, um ruído estranho causou forte estática nos microfones e creio
mesmo que houve uma rápida mudança no compasso do sucesso em execução. Mas logo
a seguir, questão de um ou dois minutos, outro ruído mais forte ainda causou
uma sensação de tremor de terra na plateia, que ensaiou um começo de pânico.
Houve gritos, gente tentando sair de qualquer maneira, crianças chorando. O
apresentador do show foi até o microfone pedir calma, dizendo que nada de
anormal estava acontecendo. Foi logo desmentido por um estrondo e uma rachadura
que foi se formando num dos lados da arquibancada. Nesse ponto, ninguém mais
segurava o público aterrorizado, quer pelo fato assustador, quer pelo ruído que
cobria toda e qualquer comunicação dos responsáveis, que já nada poderiam fazer
para evitar o desastre.
Consegui uma saída rápida, graças
ao fato de estar indo em direção à referida cabina, situada junto a uma das
laterais de circulação. Por sorte minha, também, a queda da construção começou
do lado oposto àquele em que me encontrava. Lancei uma olhada de relance ao
interior do estádio e pude ver as pessoas sendo literalmente engolidas pelas
avalanches de concreto que já então rolavam livres. Julguei ver minha parenta –
uma prima em segundo grau, para ser mais preciso – mas nada poderia fazer para
salvá-la, a não ser que voltasse sobre meus passos e arriscasse minha própria
vida, já a salvo, quase alcançando a passagem que me levaria à rua em segundos.
Gostaria porém de informá-lo
sobre uma ação que é, ainda hoje, razão de grande orgulho e íntima felicidade
para mim: consegui salvar uma criança, um menino de nove anos, que lá estava em
companhia do pai e da mãe, ambos mortos na tragédia. O menino, de nome Alberto
Morais de Oliveira Sintra, hoje estudante de arquitetura (sinal de que o choque
não lhe fez um estrago irreparável, felizmente), soube informar onde
encontraria seus parentes, tios e avós, aos quais foi entregue no mesmo dia,
são e salvo, embora traumatizado pelo acontecido, acredito que para toda vida.
Alberto estava no meio do corredor, de volta da ala dos banheiros, e ficara
paralisado e atônito, sem saber o que fazer nem para onde se dirigir, quando
passei por ele e o tomei ao colo, levando-o comigo para a rua. Ficamos amigos,
quero-o como a um neto ou a um filho. Se isso puder interessá-lo, pedirei a ele
que lhe escreva uma mensagem narrando seu ponto de vista e suas memórias
daquele dia terrível.
Espero que tenha sido de algum
modo útil a sua reportagem, pela qual, aliás, quero felicitá-lo.
Um cordial abraço
Leônidas Placidino de Vieira
Corrêa
O estilo não tem menos de 75
anos, pensava Pôncio, entre divertido e impaciente. Mas a história desse senhor
tem bastante apelo. Vai certamente figurar entre as narrativas paralelas,
aquelas que ilustram e tornam mais comoventes fatos dessa categoria. Agora,
nesta primeira etapa, preciso de relatos concretos, diretos e vibrantes.
Preciso sacudir e chocar as pessoas para que se liguem na reportagem e queiram
saber como os fatos foram se sucedendo e por quê.
Suspirou fundo e forte, antes de
se levantar para ir à janela. Tinha passado pelos arquivos da prefeitura, mas
para sua surpresa não havia qualquer documento disponível da área de construção
nem da Defesa Civil. Havia registros de acidentes geológicos, deslizamentos,
acidentes geotécnicos, mas nem uma palavra escrita a respeito do maior desses
acidentes, datando apenas de dez anos antes. Se o estádio tivesse passado a
pertencer a outra esfera de governo, ele teria ficado sabendo, assim como todos
os habitantes da cidade. Além das informações que começavam a chegar via
correio eletrônico, achou que devia procurar pessoas ligadas às áreas afins –
prefeitura, esportes, em especial futebol, além dos profissionais de
espetáculos, músicos, produtores, patrocinadores. Um trabalho de Hércules, mas
valeria a pena. Estava farto de rotinas, o mesmo do mesmo, a coluna, as
reportagens sem muito destaque, programinhas de tevê com pouco ibope. Sua
última performance de mais visibilidade já completara dois anos e meio,
entrevistando um poeta romeno presente a um festival anual de literatura que
atraía gente do mundo inteiro – um cara sombrio e pessimista que a todo
instante o fazia lembrar do conde vampiro.
Havia outras mensagens na caixa
do correio. Uma delas, em inglês, era ainda mais longa que a de Leônidas
Placidino e estava assinada por um nome impronunciável, que parecia polonês ou
alguma outra língua assim propensa ao consórcio de consoantes; outra vinha em
parágrafos de palavras emaranhadas e sem uma pontuação plausível, que Pôncio em
vão tentou deslindar. Uma terceira, mais curta e perfeitamente inteligível, não
falava do desmoronamento do estádio, mas de outro assunto bem estranho: o
ataque das abelhas africanas no México, quando morreram cerca de 200 pessoas,
só nos seis primeiros anos depois da chegada das bichinhas ao país. No entanto,
continuava a mensagem, assinada por Denise d’Allencourt, a incidência de sérios
ataques fatais a animais domésticos é, geralmente, maior do que em pessoas.
Dentro dos dois primeiros anos da chegada destas abelhas ao Texas, elas
causaram morte a 11 cães, mas somente uma morte humana. E eu com isso, pensou
Pôncio, sentindo-se cansado demais para continuar.
Líria se debatia entre o desejo
de se vingar, digitando freneticamente um número inimaginável de mensagens
confusas e mentirosas, e os telefonemas de Larissa, inconformada com a tristeza
da amiga. Estava quase convencida a abrir o jogo, contar logo tudo e, quem
sabe, estragar mais um pouco a vida de Pôncio. Mas à medida que gastava sua
energia e inventividade naquela maratona maluca, a voz da outra lhe despertava
uma espécie de piedade, que ela a princípio rejeitara como uma bobagem sem
qualquer efeito positivo para ninguém. Numa tarde em que se sentia particularmente
desgostosa de tudo, a amiga a convidou para jantar em sua casa. O primeiro
impulso foi perguntar se o crápula – “nosso amigo Pôncio” – estaria lá, o que a
tentava e repelia exatamente na mesma proporção. – Nada, minha filha, Pôncio
anda fazendo serões intermináveis por conta da tal história do estádio, você
nem imagina. – É mesmo? Líria teve que controlar uma risada, despropositada no
momento. Combinado o jantar, passou na florista da esquina antes de ir para
casa, porque Larissa merecia, mas antes, parada diante do quiosque, foi
acometida por um impulso meio indefinível. Era como se fosse uma traição levar
flores para a amiga cujo marido ela odiava e queria ver destruído e fracassado.
São duas pessoas diferentes, ai, muito diferentes, discutia consigo mesma,
enquanto pagava o vasinho de orquídeas rosadas. Verdade que gostaria muito que
aquelas flores lhe dessem um bruto azar, que não devia atingir a amiga. Depois
de novo refletiu sobre o assunto, como se quisesse fugir da evidência de que
destruir um marido no prazo de validade era atingir também a mulher, que na
certa iria sofrer com isso. Nenhum argumento seria capaz de abalar uma
realidade tão cristalina. E havia os filhos, um casalzinho de pré-adolescentes
lindos, embora levassem nas faces os traços amaldiçoados do pai. São filhos
dele, mas não o mesmo, tornou a pensar, enquanto entrava no banho.
Chegou à casa de Larissa ainda
perturbada por pensamentos incômodos que não conseguia afastar. Mas quando
saiu, lá pelas dez e meia, estava mais tranquila, e a outra se declarou
satisfeita com a mudança. – Que bom que está conseguindo dar a volta por cima,
Líria. Eu sabia que você ia conseguir, sua cabeça sempre foi muito boa. Além
disso, a vida de trabalho que você leva ajuda a se recuperar, a não se entregar.
Agradeceu e saiu pensando que a outra devia ter razão nesse ponto. Mas a vida
cheia de trabalho que estava levando não era bem a que Larissa conhecia. Foi
andando para casa, a noite estava fresca e agradável, toda estrelada, e ainda
havia algum movimento nas ruas em que devia passar. O que enchia seu tempo
nessas últimas semanas não era o trabalho da empresa, que nem chegava a ocupar
seus pensamentos fora do horário regulamentar. O que enchia seu tempo de
preocupações e atividade durante esses dias era um objetivo alheio a Laio e ao
divórcio. De qualquer maneira, a luta para tirar do caminho a pedra que a
fizera tropeçar não deixava de ser uma distração. O resto se veria depois.
3
Desligou o computador às três e
tanto da madruga, como gostava de dizer. Nada tinha a ver com coisa nenhuma. Os
parcos registros que encontrara em redações de jornais e emissoras de
televisão, artigos e dados da época, não batiam com a maior parte das mensagens
que tinham chegado aos borbotões nos últimos dias. Ler aquilo tudo estava lhe
tomando um tempo longo demais, e como quase nada podia ser aproveitado, passara
a trabalhar com amostragens, escolhendo o que à primeira vista lhe parecia de
alguma consistência. Lia três ou quatro linhas e separava a mensagem para uma leitura
mais atenta ou a atirava às sombras virtuais da lixeirinha na coluna à
esquerda. O máximo que conseguira tinha sido um esquema cheio de buracos e dois
ou três depoimentos que lhe pareceram autênticos. Em resposta, consultou os
leitores em questão sobre uma entrevista cara a cara, para a qual propunha ir a
seu encontro, mesmo que em outra cidade. Avisava que estaria munido de um
gravador e, se lhe fosse permitido, publicaria fotos desses leitores
prestimosos na série do jornal e, mais tarde, no livro em que pretendia falar
do assunto.
Na manhã seguinte, logo depois do
café, rumou para o escritório, uma sala alugada a duas quadras de casa. Queria
trabalhar em paz, sem telefones ou campainhas interrompendo o fio de seus
pensamentos, sem mulher e crianças desviando sua atenção a todo instante. A
sala ficava num prédio meio decadente, um quinto andar de frente para o mar de
Copacabana; um lugar onde estava no meio de tudo e nada o perturbava. Ligou o
computador e consultou a caixa de correio.
Milagrosamente, a primeira
mensagem que encontrou, vinda de uma tal Mônica Lessa, pareceu-lhe mais
substanciosa que todas as outras. A moça contava tintim por tintim o que vira
no dia do desastre, e não fora pouca coisa. Era um relato minucioso e ao mesmo
tempo econômico, que explicava as coisas de modo claro e direto. Falava da
perda de uma amiga de infância que estava com ela na ocasião, da dor que a
fizera cair em depressão e das imagens terríveis que guardava nitidamente na
memória. Uma longa terapia lhe havia mostrado que nada atenua mais uma dor ou
uma lembrança assim arrasadora do que falar sobre ela, muito e durante muito
tempo, sem se censurar e sem calar o que mais nos perturba. Uma talking cure, como no tempo de Freud e
suas histéricas. Ainda que tudo esteja bem presente ainda, dizia o texto de
Mônica, quero aproveitar a oportunidade não só para contribuir com seu
propósito de encontrar afinal o(s) culpado(s), como para chamar a atenção para
a omissão do prefeito daquele tempo, Lauro Munhoz Clemente, que se revelou um
homem incrivelmente frio, indiferente à dor daquelas pessoas e de suas
famílias. Muitos deles deviam ser eleitores seus, e no entanto – a mensagem
continuava por mais um parágrafo nesse tom ressentido, e Pôncio ficou pensando
no significado daquilo. De qualquer modo, valia a pena procurar um contato
pessoal e tentar extrair dessa quase vítima e testemunha ocular detalhes que
fossem úteis para precisar melhor a história toda.
Pôncio achava que cada
acontecimento tem uma cara própria, assim como as pessoas têm temperamentos e
idiossincrasias específicas. Por trás de um acidente sempre existem falhas,
fraquezas não esclarecidas depois, porque as pessoas se defendem, se protegem e
evitam pôr a bunda na janela numa hora dessas. Os dados que Mônica ainda podia
fornecer, as coisas que poderia esclarecer lhe serviriam, estava certo disso.
Lauro Munhoz era agora um senador da república, e isso era um dado bem
interessante. Chegaria a hora de procurar esse personagem chave, e era bom que
fosse limpando o caminho para chegar lá com o mínimo de obstáculos.
Mônica Lessa era uma mulher
bonita, alta e discreta. Chegou exatamente à hora marcada, reconheceu-o de
pronto – estou de blusa vinho e calça jeans, ele dissera – e os dois se
acomodaram numa das mesas do bar quase vazio. Ainda não eram cinco horas da
tarde. Pediram um chope gelado para ele e um suco para ela. Reparou no olhar
rápido com que a moça fez o reconhecimento do ambiente, observando-o também de
alto a baixo numa única piscada. Aparentava descontração e sorria com
facilidade. Pôncio imaginou-a digitando a mensagem e se felicitou por ter
marcado aquele encontro. Ainda que não conseguisse avançar muito em sua
pesquisa, o que era sempre uma incógnita, acreditava que Mônica lhe seria útil
de algum modo. Não era o tipo de pessoa que se desloca e vai a um encontro
daqueles sem ter muito a dizer. Além de inspirar confiança, era muito segura de
si, bem articulada e tinha uma voz agradável, bem modulada, que lhe dava prazer
ouvir.
— Bom, ela disse, estou aqui. –
Eu também, ele respondeu, e os dois riram. – Acho que estamos pensando na mesma
coisa, ela arriscou. Pôncio jogou a cabeça para trás e sorriu de leve – espero
que sim. – Você quer saber alguma coisa sobre o desabamento do estádio do Rio
Comprido, não é? – E você me disse em sua mensagem que tinha boas informações a
esse respeito. Ela assentiu de leve e se endireitou na cadeira.
— Bem, começando do começo:
cheguei lá meia hora antes do show, para escolher um bom lugar e ver os
cantores e os músicos entrando, talvez ver um deles de perto, falar com ele,
pedir um autógrafo. Eram vários artistas de sucesso, bons cantores, músicos da
pesada. Eu era bem jovem, e comigo foram duas primas adolescentes, Marina,
amiga do tempo de escola, e uma outra amiga, Margarida. O estádio foi ficando
muito cheio, e quando o show estava para começar, o primeiro conjunto afinando
as guitarras e o público se agitando nas arquibancadas, Margarida começou a
sentir falta de ar. Era uma crise de asma, uma coisa que às vezes acontecia a
ela, e tivemos que sair do meio da multidão. Foi difícil, mas chegamos ao
corredor de circulação depois de uns quinze minutos, ela respirando com
dificuldade e as meninas se lamentando por causa do show e dos lugares
perdidos. Disse a elas que não podia deixar as duas no meio do povo, que tinham
ido sob minha responsabilidade, e que a mãe delas ia ficar brava comigo se
fizesse isso. Marina, minha amiga de escola, tinha ficado no estádio, mas não
quis deixá-la encarregada de olhar as meninas. Quem respondia por elas era eu.
Parece que estava adivinhando. Margarida foi parar na emergência de um hospital
próximo, e nós com ela.
— Então você não estava lá dentro
quando – não, não estávamos lá dentro. Graças a Deus e à asma de Margarida.
Pôncio se mexeu, impaciente. – Sei o que você está pensando, disse Mônica,
sorrindo. Mas espera um pouco, já chego lá. Deixamos Marina sendo medicada e
voltamos ao estádio, porque ninguém se conformava de perder o show assim,
queríamos ao menos aproveitar um pouco de nossas entradas. Não conseguimos
voltar para junto de Marina, e nos acomodamos como foi possível. Mas pouco
depois do acesso às arquibancadas, ouvimos um ruído como um estrondo abafado e
a estática dos microfones disparou, de modo que paramos e tapamos os ouvidos,
até que outro estrondo mais forte nos deu a sensação de que o chão estava
tremendo e nós voltamos para a rua. Depois disso, foi aquela desgraça que se
viu e até hoje ninguém explicou direito. Minha tia, a mãe das meninas, foi
pessoalmente agradecer a Margarida por sua alergia respiratória, que salvou
nossas vidas e a dela própria. Lamento muito a perda de Marina, embora
reconheça que teria sido ainda pior se tivesse deixado as primas em sua
companhia. Mas não era só isso que eu tinha pra lhe dizer.
Daí em diante, o depoimento de
Mônica se tornou um laudo acusatório contra o prefeito Lauro Munhoz. Pôncio
ouvia tentando discernir o que era puro ódio do que seria verdade naquele
discurso. Era uma fala controlada, sóbria e quase sem pausas, mas os olhos dela
haviam se tornado mais escuros e sua expressão estava carregada. Falava baixo,
mas às vezes sua respiração parecia se alterar, as narinas delicadas se moviam
como as de um cavalo depois da corrida e os lábios se contraíam. Imaginou quase
divertido que podia estar lidando com uma assassina em potencial, quem sabe uma
paranoica obcecada pela ideia de acabar com o prefeito e sua carreira.
Ela porém se explicou. Tinha uma
razão pessoal para detestar o sujeito: na época da eleição, acreditava piamente
nas qualidades de político de Lauro, do qual era amiga pessoal; ajudou em sua
campanha, conseguiu muitos votos entre parentes, amigos e colegas de trabalho.
Eleito, Lauro abusou da confiança dela, que esperava um lugar na prefeitura com
um salário à altura de suas aptidões de arquivista e comunicadora. Na época,
lutava contra a doença da mãe, um câncer de mau caráter, resistente ao
tratamento. Ele no entanto não cumpriu as promessas e, mais grave ainda, não
repôs o rombo que sua campanha tinha deixado nas economias dela, uma soma
considerável, o que a levou ao desespero quando percebeu que o prefeito evitava
atender seus telefonemas e a deixava fora da agenda de contatos.
4
Laio dobrou o jornal e o deixou
sobre a escrivaninha. Recostou-se pensativo na grande cadeira de couro, olhando
um ponto distante lá fora, onde os galhos das árvores dançavam de leve. Não
sabia muito bem o que pensar do amigo. Se por um lado achava-o meio canalha por
ter se metido daquele jeito em sua vida com Líria, por outro lado tinha medo de
estar bancando o ingrato. Vivia uma dúvida meio sem saída, porque não havia
como provar nada sobre ela. Além disso, ao menos até agora, não tinha
encontrado coragem para investigar o que seria mesmo verdade e o que poderia
ser uma acusação leviana. A confiança que sempre depositara no amigo o
imobilizava um pouco, talvez pelo medo de confirmar o que ele havia dito,
naquele dia que passaria o resto da vida tentando esquecer. E mesmo que fosse
verdade, como condenar assim a mulher a quem devia a melhor fase de sua vida?
Ela parecia tão sincera, tão magoada pela atitude dele e indignada com o gesto
de Pôncio, que Laio não conseguia acreditar inteiramente no amigo. Às vezes se
perguntava se não teria agido de um modo brutal, se não estava sendo injusto
com ela e consigo mesmo, afastando de sua vida a pessoa com quem mais desejava
estar.
Tinha guardado o jornal com a
coluna de Pôncio, falando no caso do estádio e pedindo a colaboração dos
leitores, que lhe despertara um sentimento persistente, difícil de definir.
Tinha vontade de ir procurar o amigo (ou ex-amigo), certamente uma deixa para
acertar as contas com ele, conseguir ver mais claro nessa barafunda que
enredava sua vida ultimamente. Quando estava quase decidido, contudo, essa
mesma insegurança o detinha e o forçava a pensar melhor – mas pensar o quê? Era
como se atravessasse uma zona de neblina muito espessa, como se tivesse os
olhos turvados. Como abordaria o outro, o que lhe diria? A imagem de Líria às
vezes parecia saltar em seu pensamento – Líria com lágrimas escorrendo pelo
rosto, furiosa, arrasada; Líria em outros tempos, feliz da vida – ninguém sabia
ser tão feliz quanto Líria – dando voltas pela praia, nas férias, entrando no
mar, rindo para ele.
De repente, Laio se levantou e
lançou um olhar pela mesa. Vestiu o paletó, conferiu os bolsos e fez uma
ligação do celular. Depois saiu e entrou no elevador. Tinha um ar muito
decidido, quase de atrevimento. Na verdade estava irritado contra a própria
indecisão, contra o juízo inseguro que fazia de Pôncio, contra a possibilidade
das fugidas de Líria, contra a vida.
Pôncio o esperava no escritório,
mais curioso do que inquieto, um pouco preocupado, não muito, e percebeu que
aguardava esse encontro com certa ansiedade. Não foi logo ao encontro do outro,
quando o viu abrir a porta que deixara encostada. Hesitou sobre o que dizer, e
arriscou um oi meio sem expressão. Laio fechou a porta com uma cara pouco
promissora, e pela cabeça de Pôncio passaram várias possibilidades – um tiro
não, não seria o caso; palavras duras, talvez, mas nada que pudesse chegar a
uma agressão, porque o tempo já havia passado. Esperou com um meio-sorriso e
disse ao outro que sentasse a sua frente, estendendo-lhe a mão, cordial. Laio
ficou olhando para ele e sorriu também. Bom, estava quebrado o primeiro gelo, e
era quase certo que não houvesse mais gelo nenhum daí para a frente. Um diante
do outro, as palavras começaram a sair mais espontâneas – tudo bem, e aí, como
vai a vida. – Não sei bem como vai a vida, cara. Ainda não sei. Não tomei pé
nessa nova vida. Pôncio esperou um pouco. Queria que tudo corresse naturalmente
nesse reencontro, que o tecido delicado da amizade pudesse se regenerar sem
traumas. Esperava o que ele iria dizer, mas sua expectativa mais tensa não se
confirmou, ao menos não de pronto.
Laio afinal voltou a falar. Falou
da coluna do jornal, da história do desabamento e da questão dos leitores –
você sabe, nem todo mundo tem critérios suficientemente confiáveis, pode ser um
risco acreditar – e Pôncio sorriu. Ah, se você soubesse as mensagens malucas
que têm chegado à minha caixa de correio! Estava de alguma forma aliviado, como
se tivesse esperado um golpe e em vez disso recebesse um afago. Falou dessas
mensagens e os dois riram com vontade. Não por causa das bobagens que o outro
descrevia, mas porque de repente tinham ficado muito alegres. – Cara, disse o
jornalista, vamos tomar alguma coisa? Desceram como dois colegiais no começo
das férias.
Um ano antes, logo depois da
decisão de se divorciar de Laio, Líria tinha escrito uma carta catártica ao
ex-amigo jornalista. Pretendia feri-lo com o que tinham tido de melhor, aquela
amizade cheia de confiança e alegria, uma alegria serena, clara, isenta de
dúvidas. A amizade que até agora lhe doía tanto ter perdido. Tanto ou quase
tanto quanto a perda de Laio. Restava Larissa, que às vezes, sem dizer nada,
ficava com um olhar engraçado, como se hesitasse quanto ao que dizer, como se quisesse
perguntar alguma coisa que não se sentia autorizada a perguntar – mas como, se
eram ainda amigas? Líria percebia que o gesto de Pôncio jogara uma sombra entre
elas duas, e talvez a culpa fosse dela mesma, porque Larissa parecia não saber
ainda. Que inferno, que confusão na cabeça, como detestava ter que viver se
equilibrando entre decisões que afinal não resolviam nada.
Nessa tarde decidiu ir à procura
de Pôncio. Mais de um ano havia se passado, as cabeças estavam mais frias. Se
ele nada dissera à mulher, era porque restava alguma insegurança, quem sabe não
tinha sido impulsivo demais e agora não tinha coragem de – o cretino,
resmungou, pegando o telefone.
Pôncio foi pego de surpresa. Além
disso, estava diante do amigo. Limitou-se a respostas curtas, mas não quis ser
hostil. Tampouco informou a novidade a Laio, que já se despedia. Por esse lado,
os ressentimentos estavam desfeitos, tinham se evaporado. A amizade apenas
hibernara, durante um ano em que as peças tinham mudado de lugar muito depressa
e de modo inesperado até para os atores principais. Não sabia como acabaria o
encontro com Líria, mas não ia fugir. Além disso, estava muito curioso sobre o
que ela iria dizer ou fazer, depois desse tempo de distância.
5
O pessoal das igrejas tinha atribuído
o desastre a um castigo divino, por causa dos excessos e da imoralidade de
algumas pessoas no meio do público. Houve um excedente de feridos nos
hospitais, que não davam conta do recado, e gente esperando em macas nos
corredores e do lado de fora, nas calçadas. O desabamento foi o assunto
principal dos jornais e dos noticiários de tv e rádio durante dois ou três
meses. – Depois, como tudo que acontece nesta terra, a coisa toda foi caindo no
esquecimento, e até hoje a parte mais consciente da sociedade em todo o país.
Outros países, que na época foram solidários e prestaram ajuda às vítimas e às
famílias, estão esperando uma explicação ao menos plausível, que reabilite
nosso governo e os homens públicos. Podia ao menos haver a preocupação de
tentar provar que não somos um bando de aborígines irresponsáveis, mas que
nada.
Líria ouvia a digressão comprida
de Pôncio, que se explicava menos como uma justificativa para o trabalho que
desenvolvia no momento do que como um jeito respeitável de fugir do assunto principal.
O encontro tinha sido um pouco menos cordial que o dos dois amigos, agora mais
amigos que antes. Nada porém que desse a entender a hostilidade e o sentimento
de ódio que Líria experimentara no começo da crise entre ela e o marido. Talvez
isso se explicasse pela atitude de Pôncio, que fora polido, atencioso, e até
ensaiara um gesto de certo carinho, dando-lhe um gentil tapinha nas costas que
lembrava os velhos tempos.
Ela ouvia atenta, mas pensava em
outras coisas – que ele continuava com a mesma cara de garotão grisalho, que
era difícil acreditar que um dia lhe dissera coisas como aquelas. – Pôncio, ela
disse afinal, me explique o que foi que deu em você quando resolveu me acusar
daquele jeito de estar traindo meu marido. Ele sentiu que o terreno neutro lhe
fugia dos pés. Pior, sentiu que estava sendo jogado de cara no chão sujo que um
dia havia experimentado, quando a viu na companhia daquele sujeito saindo de um
motel num carro que não era o dela. Mas se ela o arrastava de novo para esse
chão, era desse ponto de vista que devia encará-la. Recolheu o vago sorriso de
antes e olhou nos olhos da antiga amiga-quase-irmã, como a tinha chamado uma
vez. – Você sabe o motivo melhor que eu, Líria. Esperou a resposta dela, que se
limitou a abanar a cabeça em negativa e o encarou sem piscar. – Não sabe? – Se
soubesse não estaria aqui, meu Deus do céu. Nunca entendi nada do que você fez.
A princípio pensei que estava interessado em nos separar para ficar com Laio –
ela disse, e Pôncio franziu o rosto numa expressão de nojo. Depois achei que
talvez a coisa fosse comigo. Mas nada disso aconteceu, ao menos que eu saiba.
Então, o que foi?
Pôncio teve um breve momento de
hesitação. Depois se levantou, porque percebia que o antigo sentimento de
rejeição ameaçava voltar. Era muita chinfra, como se dizia em seus tempos de
estudante. Muito cinismo. Então a coitadinha não sabia. O que podia dizer a
ela, senão alguma coisa que a ferisse, que a fizesse cair daquela pose de
mulher séria?
— Cheguei a ter muita raiva de
você, ela continuou, sem se alterar. Agora só queria que você me explicasse.
Acho que muita coisa ficou por ser esclarecida.
Ocorreu ao jornalista que ainda
não havia escrito uma linha de seu trabalho naquele dia. Começava a se
impacientar, porque seus prazos estavam chegando ao fim, a primeira fase da
série começaria na segunda-feira seguinte, e Líria o fazia perder aquele tempo
oco, sem sentido, mentindo daquele jeito deslavado. Exatamente como antes.
Ela no entanto esperava uma
resposta, sentada a sua frente sem o menor indício de querer se despedir ou
mudar de assunto. Pôncio se moveu na cadeira, sentindo o desconforto de não
saber que atitude tomar. Já não sentia a antiga aversão incontrolável, nem
pretendia voltar atrás. Mas o olhar límpido com que ela o fixava era
desconcertante. – Bom, começou, tentando ser o mais suave possível, é que os
fatos... – Que fatos? – Líria, Líria, por favor, não me faça voltar no tempo,
porque isso é uma das coisas que detesto. O que está feito... – Não é tão
fácil. Você se deu conta do que aconteceu comigo, com Laio? Percebeu que a
culpa foi toda sua?
Agora tinha sido demais. Essa
mulher não sabe o que diz, ninguém pode ser assim tão falso. – Tudo tem que ter
um limite, ele se pegou dizendo, e ela esperou. Muito bem, ele disse com uma
tranquilidade que o surpreendeu, acontece que Laio é um irmão para mim, e eu só
fiz o que gostaria que meu irmão tivesse feito: abri os olhos dele, contei o
que tinha visto. Foi só isso. – E o que foi que você viu? Olhou-a com atenção e
uma calma que não sabia de onde vinha. – Ponha sua memória pra funcionar,
Líria. Onde foi que vi vocês, você e aquele seu colega de trabalho, lembra?
Saindo daquele motelzinho de terceira, às cinco da tarde de uma quarta-feira de
sol? Líria arregalou os olhos. – Meudeusdocéu, o que é isso? Dentro de um
carro, segundo você mesmo disse, como pôde me reconhecer com tanta certeza?
Você sabe que não era eu, criatura. Eu nunca fiz isso, nunca trairia um homem
como o Laio. Ele suspirou e se distendeu em sua cadeira de braços. – Ok, Líria.
Não sou dado a alucinações, tenho uma vista ótima e reconheci aquele seu
vestido estampado. Agora, se você me dá licença... Ela deu a volta à mesa e
parou a seu lado. – Se você me reconheceu só pelo vestido, então a coisa é mais
grava do que pensei. Estou processando você por falso testemunho e danos
morais. Quero me reabilitar aos olhos de Laio e das pessoas que nos conhecem,
dos amigos, dos colegas de trabalho. Me aguarde, Pôncio. Ele se ergueu e foi
abrir a porta. – Como queira, minha cara, e fez uma reverência que Líria não
chegou a ver. Voltou à mesa com a sensação desagradável de alguma culpa
indefinida. O trabalho rendeu muito pouco no resto daquele dia.
O dia seguinte correu
inexpressivo e sem novidades. Enquanto esperava um telefonema do jornal, ele se
pôs a arrumar a escrivaninha em desordem. Lá no fundo da última gaveta,
encontrou o envelope com a letra de Líria. O carimbo do correio estava datado
de outubro do ano anterior. Abriu e viu a carta, já quase esquecida, em que ela
o acusava de ter destruído sua vida e ter transformado a vida dos dois – ela e
Laio – em um inferno de desconfianças e acusações sem razão. Comparava-o a uma
ave de rapina que mata para se alimentar de carniça. Acusava-o de inveja,
deslealdade e alta traição. Encerrava dizendo que não queria vê-lo morto, mas
acabado, roído de remorsos e sem ninguém na vida. Havia ainda uma ameaça velada
de contar tudo a Larissa, o que não acontecera. – Talvez ela seja uma daquelas
galinhas que cacareja mas não põe ovos, disse entredentes.
Depois ligou para Mônica Lessa e
deixou um recado; precisava muito falar com ela. Acabou a arrumação das gavetas
e recolocou a carta de Líria exatamente no mesmo lugar. Pouco depois falava com
Mônica, pedindo-lhe que conseguisse um certo documento, indispensável para
comprovar o que ela lhe havia dito sobre Lauro Munhoz. O telefonema do jornal
demorava, e ele resolveu ir até a redação.
6
O estádio transbordava de gente.
Uma gente irrequieta, a maioria muito jovem, entre eles numerosos estudantes de
uniforme. Alguns tinham vindo direto da escola, em muitos casos até cabulado as
aulas; na ânsia de conseguir os melhores lugares para ver de perto e interagir
com seus ídolos, tinham chegado horas antes do show. Uma vista geral das
arquibancadas mostrava um auditório fervilhante, colorido e ruidoso, onde aqui
e ali espocavam gritos, grupos que se movimentavam como se dançassem, agitando
corpos e braços, bandeiras, as flâmulas trazidas de casa ou compradas de
camelôs e cambistas, fotos de artistas para serem autografadas. Por sobre o
espaço aberto, voavam ultraleves com faixas flutuantes. De alguns pontos
chegavam sons de altofalantes com trechos de sucessos que agitavam ainda mais a
garotada, num coro meio desencontrado que percorria o círculo de cabeças e
ensandecia quem não pretendesse participar da zoada geral. Empurrando-se e se
ajeitando como era possível, a plateia assustava um pouco os mais pacatos e os
que chegavam em cima da hora e pretendiam conseguir um lugar.
Na rua havia discussões e gritos
ao longo das filas, principalmente nos portões de entrada, onde se acotovelava
uma multidão cada vez mais numerosa. Os seguranças apelavam para a agressão
contra os eternos penetras, duas ou três brigas deixaram narizes machucados e
os vendedores de suvenires e camisetas se misturavam aos cambistas ou se
alinhavam no meio-fio, exibindo seus artigos – pulseiras com fotos, medalhões,
enfeites para usar durante o espetáculo, óculos com desenhos engraçados e
óculos escuros imitando os rayban de
algumas celebridades. Havia instrumentos rudimentares, bongôs, guitarras de
plástico e máscaras imitando a maquiagem dos rapazes de um dos conjuntos. Havia
estalinhos, fogos para soltar durante o show que os seguranças, suados e
irritados, se esforçavam para impedir que entrassem sem muito sucesso.
Purpurina para os cabelos, colares piscantes e serpentinas se misturavam a
bonés, quepes e chapéus de caubói. Havia até saias rodadas ou cheias de franjas
como as de algumas roqueiras enluaradas.
Enquanto isso, vendedores de água,
mate e cerveja se equilibram nas arquibancadas com suas caixas de isopor e aqui
e ali surgem cachorros quentes, pipocas, balas e chicletes, salgadinhos em
cestas, que desde os corredores de entrada eram oferecidos junto com
sanduíches, dizendo as más línguas que nessas cestas e carrocinhas se escondiam
cigarros e pós proibidos. A julgar pelo comportamento de alguns membros da
plateia, talvez isso fosse verdade. Havia além disso alguns casais em pleno
exercício, escondidos entre as colunas e até no meio do povo das gerais.
O primeiro capítulo da reportagem
saiu na segunda-feira, com chamada na primeira página do primeiro caderno e
três páginas inteiras, num caderno especial anexo ao noticiário policial.
Pôncio e seus ajudantes – uma equipe de três focas, um fotógrafo e um
jornalista, o Maia, cuja carreira seguia no anonimato há alguns meses –
conseguiram fotos da época, que foi preciso retocar, e insertaram pequenas
crônicas e relatos sobre a vida dos astros desaparecidos no desabamento.
Acreditavam que a motivação maior para que lessem seu trabalho viria desses
relatos. Muita gente guardava a recordação do acontecido e lamentava a perda
daqueles artistas. Gente de meia-idade, gente que tinha perdido parentes ou
amigos no desastre; pais e mães de família, profissionais, trabalhadores ou
indivíduos no desvio, mas com a memória bem clara dos fatos de dez anos
passados – foi deles que a equipe se valeu para complementar a reportagem,
acrescentando depoimentos às lembranças e aos parcos arquivos de que dispunham.
Mônica Lessa ligou para ele
naquela tarde, voz murcha e elogios econômicos. – Conseguiu o que lhe pedi? –
quis saber Pôncio, percebendo no tom de sua voz um preâmbulo de reclamação.
Mônica porém foi adiante. Não apenas reclamou como, diplomaticamente embora,
acusou Pôncio de distorcer os fatos. – Você dispunha de dados além do que foi
dito, ela rabujou. Sabia o que havia por trás do acidente. Ele argumentou com a
falta de documentos comprobatórios contra o prefeito, a impossibilidade de
acusar alguém sem provas, o processo que teria que enfrentar se acusasse assim
um senador da república. – Hum, ela se limitou a dizer. Vou ver o que consigo –
e desligou sem maiores formalidades.
Líria não se conteve e ligou para
Larissa. Queria ter a exata noção de se, e como, a conversa dos dois teria
repercutido, mas a amiga parecia continuar alheia ao problema e ao
desentendimento. Almoçaram juntas naquele dia, e de fato não notou nada de
diferente na outra. A não ser aquele olhar que às vezes deslizava e parecia
fixar um ponto fora do foco em questão – elas duas e a conversa do momento –
não notou nada diferente em Larissa. – O estádio caiu num momento de glória,
Líria disse de repente. Igualzinho ao meu casamento. Quem diria, uma construção
daquelas. Teve a impressão de que Larissa ficou embaraçada, mas foi só um
instante. Logo fez um carinho em sua mão e chamou o garçom pedindo a conta.
Pôncio abriu os olhos e fixou o
teto por alguns minutos. Dormira mal, tivera dois sonhos estranhos de que
felizmente já não se lembrava em detalhes, mas que o haviam incomodado muito.
Olhou o relógio e pulou da cama num susto. Estava meia hora atrasado para o
encontro com Mônica Lessa, que lhe prometera uma prova decisiva para aquela
manhã, no café ao lado de seu escritório. Procurou o celular para avisá-la do
atraso e passou rapidamente no banheiro. Seu rosto no espelho lhe pareceu
envelhecido, cansado, mas não havia tempo para maiores frescuras além da barba
feita às pressas e da roupa, que felizmente já estava à mão no cabide do
closet. Mal falou com Larissa, que chegava do mercado e abria uma embalagem de
queijo na bancada da copa. – Cuidado pra não se estabacar por aí, ela disse,
meio rindo meio solene – Larissa, a rainha da pose, ele pensou, já no elevador
que ela deixara parado no sexto andar. Desceu experimentando um sentimento
difícil de definir, porque misturava cansaço e uma espécie de ternura que o
surpreendeu um pouco.
Chegou ao café e não viu sua
rancorosa testemunha. – Melhor assim, ruminou, sentando-se e chamando Célio, o
pequeno garçom que o atendia sempre. Sentia fome e ao mesmo tempo um pouco de
náusea. Lembrou que Mônica podia ter desistido de esperá-lo, mas nesse instante
viu-a refletida no espelho ao fundo do balcão e relaxou. Célio já vinha em sua
direção, a bandeja suspensa como sempre fazia, por medo de esbarrar em alguém.
Puro hábito, porque o café estava quase vazio. Sorriu para o baixinho – e aí,
como vai o dia? – e o outro sorriu também, com seu jeito meio tímido meio
malandro – vai como sempre, doutor. Mônica chegou a sua mesa e pediu licença, o
que dava a entender ainda algum ressentimento, mas Pôncio ignorou sua cara
séria e sorriu para ela. – Senta, Mônica, por favor. Quer um café? O pãozinho
daqui é uma delícia, posso pedir pra você também? Ela sentou a sua frente sem
rir, mas com uma expressão mais desanuviada. Não disse sim nem não, de modo que
ele passou a se ocupar do tal pãozinho e seus acompanhamentos.
Enquanto ele comia, a moça abria
a bolsa – uma bolsa preta, enorme – e tirava papéis e objetos que ia pousando
sobre a mesa de madeira. Pôncio evitava prestar atenção nela. Concentrava-se
com devoção no café com leite e no pão dourado e cheiroso que tinha a sua
frente. Descobriu que a leve náusea que sentira antes devia ser um protesto do
estômago vazio. As coisas que lhe davam prazer recebiam dele uma espécie de
embevecimento, quase uma unção, e seu rosto ficava doce e como que iluminado
por dentro. Parece uma criança comendo, Mônica pensou, e por um instante sentiu
uma enorme atração por aquele sujeito que a irritara tanto dois dias antes.
Terminou de arrumar as coisas sobre a mesa e esperou, olhando em volta, um
pouco embaraçada com o impulso do momento. – Conseguiu novos depoimentos? –
perguntou pouco depois, como se procurasse um jeito aceitável de abordar o
jornalista. Ele quase terminara a refeição e balançou a cabeça afirmativamente.
– Achei um cara disposto a falar sobre detalhes que ele jura que só ele
conhece, embora a essa altura eu não acredite muito que possa descobrir grandes
novidades. – Sabe o nome dele? – quis saber Mônica, muito interessada. –
Marcondes, Marcolo, sei lá, algo assim. Mas vamos lá, me mostre o que
conseguiu, disse ele, limpando a boca e as mãos no guardanapo de papel.
Naquela tarde, Laio ficara de
encontrar-se com ele no escritório, onde poderiam conversar com mais calma.
Pôncio queria falar de Líria, da visita e das intenções belicosas que ela havia
manifestado. Mas havia mais que isso. Precisava trocar ideias com o amigo sobre
o que estava sentindo e que passara a incomodá-lo a ponto de perturbar seu
sono. Ninguém melhor que Laio para ajudá-lo a trabalhar aquele sentimento que
era como um corpo estranho. Afinal, tudo começara por causa dele e da amizade
fraterna que os dois partilhavam havia tanto tempo. Por essa amizade havia
quebrado um de seus princípios mais constantes – não se meter na vida alheia. A
revolta que a visão de Líria com outro cara lhe havia causado o impelira a se
comportar como um xereta. Não sentira arrependimento algum até a semana
anterior, quando ela o havia procurado, disposta a limpar seu nome, segundo lhe
dissera, o dedo em seu nariz. Impossível que não estivesse sendo sincera. Havia
muita indignação, muita revolta em sua voz e na atitude com que o enfrentara. –
Ela me disse que ia procurar testemunhas contra mim. Não sei até que ponto...
Laio se levantou e se aproximou
dele, recostando-se à bancada. – Cara, disse, muito sério, acho melhor não
mexer mais com isso. Não acredito que a Líria vá mover uma ação contra você. –
Ah, você não viu os olhos dela, não viu a pose com que me anunciou a decisão.
Mas o que me incomoda mais nem é propriamente a chateação que isso pode me
trazer. O que me preocupa agora é que, pela primeira vez em um ano, estou em
dúvida sobre o que vi. Ela não pode ser assim tão cara de pau, se é mesmo a
pessoa que eu conheci e que estimava tanto. Estavam dentro do carro, e pode ter
acontecido que eu tenha visto uma mulher muito parecida com ela, que afinal não
é um tipo tão raro. Às vezes começo a pensar que minha revolta me fez ver
alguma coisa que talvez não seja verdadeira. E se eu cometi uma injustiça
contra ela, se atrapalhei a vida de vocês sem motivo? Laio voltou para a cadeira
em frente ao amigo e ficou olhando para ele. – Você é um cara de muita coragem,
não? Como pode vir com essa conversa agora? Não acha que seria mais apropriado
calar-se para sempre, como se sugere nas cerimônias de casamento? Pôncio se
sentiu atravessado pelo olhar do outro e baixou a cabeça. – Talvez, disse Laio
pausadamente, talvez você esteja cometendo a segunda maior bobagem de sua vida,
se a primeira foi esse erro de pessoa. Nesse caso, cara, eu me mudaria pra
Namíbia só pra não ter que nos encarar de novo. Pense nisso, Pôncio – e
levantando-se saiu da sala.
7
Na semana seguinte, a segunda
parte da reportagem falava dos números iniciais do show, do sucesso do novato
Tasso Gouveia, que desapareceu no desastre junto com os três músicos que o acompanhavam.
No último box, sob o título “Desídia e omissão”, insinuava-se que o prefeito
Lauro Munhoz poderia ter sido mais atento quanto à segurança das obras sob sua
administração, o que na certa teria evitado a calamidade e a perda de tantas
vidas. Às dez horas, em sua mesa no fundo da redação, Pôncio relia a matéria,
pensativo, e um suspiro escapou de seu peito. – Sua besta, pensava – ou falava?
– você está querendo um pouco mais de confusão em sua vida. Já entendi, te
conheço há quarenta e seis anos, você não me engana. O primeiro passo foi a
confissão desnecessária, a indignação justíssima de seu amigo, quem sabe se
ainda, e o peso dessa culpa que não tem jeito, vai pendurada em sua carcaça
pelo resto da vida. Agora você se castiga por ser tão estupidamente babaca e
honesto e publica isso, louco pra ser processado pelo senador também, que um
processo só é pouco, seu verme incongruente. Outro suspiro. Não podia ter feito
aquilo, praticamente acusando um senador da república sem uma prova efetiva de
sua culpabilidade. – Merda, rugiu, onde é que eu estou com a cabeça? Uma onda
de calor lhe subiu ao rosto e ele pensou até, por um instante, em recolher a
tiragem daquela maldita primeira edição. Tinha o laudo que Mônica lhe
entregara, triunfante, mas o laudo não valia nada. Era um mero instrumento
particular registrado em cartório, assinado por um ilustre desconhecido –
Antônio Malafate – supostamente empregado da prefeitura à época da coisa toda.
Malafate declarava que a obra de reparo do estádio, “que já apresentava riscos
e fora precariamente restaurado para o show”, não passava de uma promoção que
“daria prestígio ao município, em um ano que precedia as eleições”. – Sabia que
ele está sendo alvo de investigações sobre sua administração passada e sobre
sua atuação hoje em dia? – Mônica lhe explicava, de olhos brilhantes. Esse
homem é um mentiroso, e está sob suspeita de sonegação, remessa ilegal de
dinheiro, enfim, a sujeira de hábito entre essa gente. Uma boa hora pra
reforçar as acusações. Malafate resolveu me ajudar porque foi testemunha do que
Munhoz fez comigo. Você é um iluminado, Pôncio, um jornalista de prestígio. Não
vai perder essa chance de marcar pontos em seu currículo e prestar um serviço à
sociedade, ajudando a desmascarar mais esse bandido que se esconde atrás do
mandato dado pelo povo.
Um dos pontos de apoio de Líria
durante aquele tempo foram os afazeres do dia-a-dia, a cama por fazer, a louça
por lavar, as compras do mercado – essas tarefas que nos salvam de pensar todo
o tempo na morte ou no que deu errado em nossa vida. Havia ainda as tarefas do
RH, que às vezes a faziam esquecer um pouco seus problemas; gente aflita,
colegas no sufoco, licenças, férias, gratificações ou aumentos, anotações que
lhe davam também alguma alegria, contagiada por antecipação pela ajuda ou
alívio que representavam para seus destinatários.
Verdade que nada disso durava
muito, porque logo o conhecido desconforto se antecipava às lembranças. Ou o
cheiro delas, um odor peculiar que aprendeu a identificar logo que se separou
de Laio, mais precisamente quando se decidiram pelo divórcio e ela voltou para
casa lançando mão de todo seu auto-controle para não chorar em público. Um
cheiro estranho, mistura de mato queimado com incenso, que lhe invadia as
narinas de vez em quando sem mais aviso, em qualquer tempo ou lugar. A
princípio imaginou que alguma coisa em seu apartamento cheirasse assim, ou que
talvez viesse das vizinhanças. Logo no entanto aprendeu a reconhecer o cheiro
de divórcio, como o chamou, porque se manifestava no carro, no trabalho, no
supermercado ou na rua. Nada mais apropriado, pensava, com sarcasmo e amargura,
divórcio deve cheirar mesmo a rescaldo de incêndio.
Tinha pensado em procurar um
serviço comunitário, e preferia reeditar a experiência de alguns anos, quando
dera aulas de alfabetização para adultos no salão comunitário de alguma
paróquia. Foi impossível, porque os horários destinados a isso pareciam
planejados propositadamente fora de seu tempo disponível. Procurou um orfanato
do estado para saber como poderia ajudar aquelas crianças, todas menores de
seis anos, mas fora informada de que só uma contribuição em dinheiro seria
bem-vinda, porque o corpo de empregados encarregados do cuidado dos menores
estava completo. Ainda propôs vir nas tardes de sábado para ler histórias e
brincar com eles, mas a atendente respondeu a sua insistência com uma cara
gelada e um sinto muito que desanimaria a própria madre Teresa de Calcutá.
Quando Laio ligou, logo de manhã,
por pouco não a encontrou em casa. Há muito não ouvia sua voz. O cheiro de
divórcio invadiu seu nariz com tanta intensidade que a deixou meio tonta.
Queria dizer não a tudo que ele propusesse, mas acabou combinando encontrar com
ele à noite no bar do outro quarteirão. Estava contrariada, embaraçada,
irritada e excitada, do que sentia vergonha, mas também lhe dava alguma alegria
no meio daquela confusão. Várias vezes pensou nele, e até a foto da carteira de
trabalho de um colega lhe deu a ilusão instantânea de ser a foto de Laio.
Não tinham faltado paqueras e
propostas durante aquele ano. Tinha chegado a sair com um colega, conhecido
antigo dos tempos de solteira, que havia reencontrado na companhia. Jantaram e
conversaram durante horas, mas quando ele deu a entender que gostaria de subir
com ela ao apartamento, Líria riu na cara dele e se despediu com uma
brincadeira fraterna e quase infantil. Em seu grupo de amigos e amigas no
trabalho, quem conhecia bem sua história desde antes da separação era Ana Rosa.
Havia também o Marlon, um cara boa pinta que virava a cabeça de muitas mulheres
mas nunca ficava com nenhuma, o que dava o que falar e gerava boatos
desencontrados entre os colegas. Líria deixara que ele se aproximasse e gostava
de seu carinho discreto, expresso em cavalheirismo e numa atenção confortável
que lhe parecia muito doce nos momentos de crise. Estava pouco se lixando para
o que dissessem dele ou o que pensassem da amizade dos dois. Bastava que ela e
ele soubessem do que se tratava. Devia a Ana Rosa e a Marlon os poucos momentos
de alegria e paz, a esperança tímida que chegara a viver durante aquele ano.
Não esquecera Larissa, sua amiga
de tantos anos que afinal tinha se condoído dela, mas Larissa estava ligada
àquele homem odioso, e por mais que tentasse separar as duas imagens ele
prevalecia sempre e projetava um pouco de sombra na mulher. Larissa não sabia
de nada ainda, mas vivia com ele, dormia com ele, era mãe de seus filhos, e isso
a afetava tanto que Líria acabou percebendo que era impossível continuar
gostando dela como antes.
A essas alturas, no entanto,
estranhando que Pôncio não tocasse nunca no divórcio dos dois, que tantas vezes
tinha qualificado como quase-irmãos, Larissa resolvera questionar a atitude do
marido. Ele tentou sair pela tangente – Meu Deus, filha, por que ficar
cavucando essa história triste – e mudara de assunto. – Não sei, Pôncio, às
vezes penso que você tem mais a ver com isso do que parece.
Depois da conversa com Laio e
sentindo-se mais culpado que nunca, o marido afinal tomou a iniciativa e contou
a ela tudo que havia acontecido. Larissa não soube o que dizer a princípio.
Estava desapontada, nunca teria esperado isso dele. Pôncio também estava mal
consigo mesmo, dava bem para perceber. O casamento deles entrara numa fase
difícil; estavam juntos mas viviam vidas separadas, e Pôncio praticamente não
lhe falava senão o estritamente necessário. Tudo isso a impelia para um acerto
de contas, e a oportunidade não podia ser melhor. – Então você resolveu jogar a
Líria no fogo por amizade a seu amigo? Bonita amizade, que precisa eliminar
alguém para sobreviver. – Ora, minha filha, – não sou sua filha, Larissa cortou
o que ele ia dizer. O tom com que falava não deixava dúvidas: tinham um
problema em andamento. Pensou rapidamente no trabalho do dia, nas dificuldades
que teria que enfrentar, e fez menção de sair, mas a mulher o segurou pela
manga. – Quero saber de tudo, Pôncio. Não gostei do que você fez. Tenho o direito
de saber, não quero mais esse papel de mulherzinha resignada. Por favor, tenha
a decência de me contar. Ainda somos leais um ao outro, ou não?
A sugestão de procurar Líria para
se desculpar já atravessara a vontade do jornalista algumas vezes, e a conversa
com a mulher o encorajou. – A única coisa que me impede é que não tenho certeza
de estar errado, ele disse afinal. – Bobagem, ela respondeu. Se não tem
certeza, então ela é inocente para todos os efeitos. E além disso já pagou por
qualquer erro que tenha cometido. A não ser que você queira muito ver a Líria
como culpada, e temos que examinar essa hipótese com cuidado. – Por quê? – ele
perguntou, sem entender. – Porque você talvez quisesse dispor da liberdade
dela. Pôncio considerou a mulher por uns segundos sem saber o que dizer. – Você
está insinuando... – Estou, ela confirmou. Pode ser que você tenha resistido a
reconhecer isso, porque afinal é um homem de princípios. Além de tudo sua vida
ia ficar um bocado complicada, e pelo jeito Líria nunca esteve disposta a
embarcar nessa sua trama, se é que ela existe. Mas é bem possível que haja uma
intenção tortuosa te levando a cometer tamanha besteira.
Algumas vezes antes, Larissa lhe
fizera um pouco de medo, Pôncio não sabia precisar por quê. Naquele dia em especial,
despediu-se dela tomado daquela espécie de temor que se vota às pessoas dotadas
de algum poder extranatural. Não demonstraria isso à mulher, é claro. Saiu de
cabeça erguida, resmungando até logo com a cara de durão com que se escondia
dos olhos dela nesses momentos.
8
– Sofre-se muito com a solidão,
especialmente quando não era desejada, ele disse, e de imediato se arrependeu.
Não pretendia queixar-se da vida nem provocar a piedade dela. – Acho que há
coisas muito piores, como a ingratidão, a injustiça, o abandono, ela respondeu,
pousando a xícara sobre o pires. Laio não se moveu. Se depois de doze meses era
isso que tinha a dizer, então – Mas me conta como está sua vida, ele disse, e
Líria deu de ombros. – Não há nada pra contar. Vamos direto ao assunto. Estou
pensando em acionar o seu amigo, e preciso ter certeza de que você não vai
ficar contra mim e depor a favor da figura. Ele a olhou longamente e balançou
de leve a cabeça. – Preferia que você não fizesse isso. As palavras lhe saíram
lentas e num tom mais grave do que o habitual. – Por que não? Aceito a
acusação, abaixo a cabeça e consinto em ser aquela mulher traidora que ele
inventou? Ou você se recusa a – Calma, Líria. Não me recuso a coisa nenhuma. O
que houve com a gente foi uma intromissão infeliz de um cara bem intencionado.
Daquelas boas intenções que vão para o inferno, como se diz. – Ah, entendi.
Então é preciso poupar o pobrezinho. – Não, nada disso. Não é isso, tenta
entender. Fazer reviver uma história mentirosa pode ser pior do que ficar
calado e deixar que ela seja esquecida. Um processo é um desafio. Se você
ganhar, a reputação dele como jornalista fica seriamente prejudicada. Se ele
vencer, você fica para sempre tachada de adúltera, mesmo que não tenha sido
verdade. – Mas o que eu mais quero é ver a reputação daquele canalha rolando
pelo chão.
Laio se debruçou sobre a mesa e
olhou-a nos olhos. – Mas ele, aquele canalha, como você está dizendo, não é
mais o mesmo. Está em dúvida quanto ao que fez, acha que pode ter-se enganado
em relação a você. – Ele te enrola e você acredita. Estive com teu amigo há uma
semana, e ele me tratou com aquela superioridade arrogante de sempre. Se
inventou essa história foi pra te tirar do páreo, pra te envolver de novo, como
já fez antes. – Não é verdade. Estive com ele depois da tua visita. Me fez ir
ao estúdio para conversar, mostrou-se arrependido e inseguro. Bancou o durão
com você, provavelmente pra não te dar o gostinho da vitória, e deve estar se
sentindo mal com tudo isso. Eu mesmo saí de lá irritado com ele, fui duro,
deixei o cara falando sozinho. – Acho interessante que só agora você se irrite.
Ele destruiu nosso casamento, arruinou tudo que nós tínhamos, e que não era
pouco – ou era? – Então, Laio disse, tocando pela primeira vez em sua mão, em
nome de tudo que nós tivemos, desiste dessa ideia.
Pode ter sido só uma impressão,
quem sabe um desejo velado, mas pareceu-lhe que ela estremecia ao toque de sua
mão. – Se tudo não passou de um engano, vamos tratar de esquecer, acho que é o
melhor para nós todos. Líria resistia, não queria desmoronar assim aos olhos
dele. – Se um ladrão tivesse levado nosso carro ou nossas joias, na certa
teríamos registrado o roubo e tentado reaver o que era nosso. Laio estreitou a
mão dela, que agora certamente tremia dentro das dele. – Não há termo de
comparação entre o que nós perdemos e o carro e as joias. – E além disso, ela
falou depois de alguns minutos lutando para não chorar, nós nem tínhamo joias.
As primeiras lágrimas correram quando Laio se inclinou para beijá-la. Foi um
beijo intenso, longo, que chamou a atenção das poucas pessoas em outras mesas.
A quinta e última parte da
reportagem de Pôncio sobre a tragédia do estádio trazia o depoimento de Mônica
Lessa e os documentos que ela pacientemente conseguira recolher e incriminavam
Lauro Munhoz com dados agora irrefutáveis. Pôncio estava satisfeito, mais que
satisfeito com o resultado da pesquisa e a eficiência de Mônica, que afinal
mostrava a que viera.
Tinham convivido quase
diariamente durante essas três semanas. A cumplicidade e o companheirismo,
insinuados desde o primeiro encontro, agora eram laços quase sensíveis que
transpareciam nos olhares, nas entonações da fala e até, em alguns momentos, em
toques físicos – um abraço mais longo do que pede a etiqueta, um aperto de mão
que se demora, o beijo supostamente fraterno que hesita um momento entre a face
e a boca. Pôncio estava bem consciente da atração que crescia entre os dois.
Isso o preocupava e deleitava em porções tão equivalentes que seria difícil prever
a atitude a tomar daí em diante. O trabalho estava feito, não havia razão para
continuar encontrando Mônica. Longe dela, na certa tudo se diluiria em
distância e esquecimento e nada iria mudar na vida dele. Era cedo para tomar
qualquer decisão, mas talvez fosse tarde para deixar que ela se distanciasse
sem uma palavra sobre o fato.
O que deveria ser o último
encontro, mais comemorativo do que de trabalho, deu-se no fim da tarde da
terça-feira depois do encerramento da série. Na segunda do encerramento, um
grupo da redação se reunira com ele para um chope e Larissa tinha participado
da festinha. Tudo estava bem dosado, os ânimos alegres, e na volta ela preparou
o ambiente, vestiu-se para trazer de volta as noites de alguns anos antes e
envolveu o marido num jogo de carícias sem limites. Ele nem pensou em resistir.
Larissa ainda o atraía bastante, apesar do tempo e da rotina. Deixou-se levar
de volta ao paraíso que haviam conhecido nos primeiros anos, quando a visão da
mulher o atirava numa espécie de vertigem. A luz da manhã não os despertou, e
se não fossem as batidas de Cinho à porta do quarto, talvez tivessem dormido
até o início da tarde em que Pôncio iria ao que, ele decidiu assim que abriu os
olhos, seria o último encontro com Mônica Lessa.
Quando chegou ao escritório
naquela tarde encontrou um envelope que alguém havia jogado por baixo da porta.
Estava endereçado à redação do jornal, carimbado com um urgente em grandes
letras vermelhas. Preso por um clipe, um bilhete manuscrito avisava que o
envelope tinha sido entregue na noite anterior. Abriu com certa apreensão,
imaginando o que poderia ser aquilo, e quando deu com o nome de Lauro Munhoz
Clemente no papel timbrado sua curiosidade ensombreceu um pouco. Depois das
flores vêm os ossos, pensou, largando-se na cadeira de braços para saber o que
desejaria o senador. O bilhete dizia apenas: Ao jornalista Pôncio Rodrigues de
Mattos. E mais abaixo: Prezado sr., gostaria de agendar uma troca de
impressões, que acredito produtiva, a respeito de seu brilhante trabalho de
reportagem publicado na série ora encerrada em seu jornal. Peço-lhe que
compareça ao café Tal e Qual, esquina da rua Raul Pompeia com Júlio de
Castilhos, hoje, dia 29 de setembro, às 18h. Desde já agradecido, L.M.
Pôncio balançou a cabeça e suspirou
até deixar os pulmões flácidos, completamente esvaziados. Que arrogância,
pensou. Depois lhe ocorreu que o sujeito talvez tivesse vindo ao Rio só para
cuidar desse assunto, mas logo resmungou – não é possível, ele deve ter
assessores saindo pelo ladrão, por que viria pessoalmente? A não ser que as
intenções sejam tão escusas que não tenha tido coragem de encarregar alguém da
– entrevista? entrevero? Ligou para a redação e chamou Caio Benévolo,
encarregado de uma coluna de fofocas políticas. – Você é um jornalista de certo
prestígio, Pô. Ele não ia se arriscar a mandar alguém no lugar. – Obrigado pelo
prestígio, mas o que eu quero mesmo é saber como pegar esse peixe no pulo. O
outro fez um silêncio de alguns segundos, e depois disse apenas – leva um gravador
e registra tudo que ele disser, ora. - E se estiver com um gorila e me revistar
no banheiro? Caio riu, mas concordou – é, pode até ser. Faz uma coisa: pede ao
cara do café pra instalar o gravador debaixo do tampo da mesa. – E o brucutu
não vai manjar esse truque? – Aí é jogar com a sorte, cara.
Chegou ao café Tal e Qual às três
da tarde e procurou o dono. – Vou lhe pedir um favorzinho, disse, depois de se
identificar. Posso até lhe oferecer uma chamada na seção de gastronomia do
domingo, que tal? Estendeu o gravador ao homem, que de repente se tornara muito
atento. – Quero reservar uma mesa para as seis horas, e gostaria muito que
desse um jeito de prender esse aparelhinho debaixo do tampo, lá pelas cinco,
depois que colocar a placa, para evitar que alguém ocupe a mesa à última hora.
Pode deixar ligado, a pilha está nova. O dono do café se endireitou e pareceu
refletir por um instante. – Senhor, o que é que está acontecendo? Alguma
investigação sigilosa? Tem envolvimento com a polícia? – Nada disso, amigo. É
só uma brincadeira com um amigo. Uma surpresa. Pode ficar tranquilo, é só isso
mesmo. Não se preocupe, tem minha palavra. Vamos escolher uma mesa que não
fique muito à vista, propôs Pôncio, sentindo que o sujeito vacilava,
desconfiado. Levou-o até uma mesa de fundo, meio disfarçada por uma coluna
larga de mármore. – Pode ser essa aqui. Depois que eu e meu amigo sairmos, por
favor, deixe passar uma meia hora – não antes disso – retire o aparelho de lá e
guarde que venho buscar logo em seguida. Mas não entregue o aparelho a ninguém,
por favor. Como eu disse, é um pequeno favor que vai lhe render uma propaganda
inteiramente grátis.
9
Larissa apareceu na companhia em
que Líria trabalhava, pouco depois das duas horas da tarde, com uma expressão
marota, parecendo muito feliz. – Surpresa! – disse, da porta da sala dos
recursos humanos, com um buquê de rosas-chá tão lindas, que a outra abriu a
boca de puro espanto. Abraçaram-se como se não se vissem há anos, e Líria,
ainda sem palavras, convidou-a a sentar numa das poltronas junto à mesinha de
centro, no canto onde costumava entrevistar os casos mais complicados. – Meu
Deus, quanta beleza, disse, contemplando as flores. Preciso de uma boa jarra –
e foi até o interfone. – Hoje é dia de festa para mim, disse Larissa. Fiquei
sabendo da novidade e saí na mesma hora para te dar um beijo. – Ficou sabendo?
– É, o Laio me ligou, feliz da vida. A outra baixou um pouco a cabeça, com ar
modesto. – Ah, a gente ainda nem entrou com o requerimento de anulação do
pedido de divórcio. Estávamos esperando se completarem os dois anos da
separação, porque antes disso não é possível se divorciar. No início... – Ainda
bem! Essa lei é bem sábia. Porque depois de concedido, não há como anular.
Ainda bem! Líria sorriu pela primeira vez. – Ai, Larissinha, estou tão feliz! –
mas logo se lembrou da história toda, da culpa de Pôncio, e não disse mais
nada.
Larissa percebeu o que passava
por sua cabeça. Mais do que uma intuição, leu na expressão da amiga o
ressentimento ainda bem forte, o esforço para não demonstrar o que sentia. –
Estou aqui também em uma missão diplomática, disse, sorrindo. Pôncio me pediu
que falasse com você, que desse a ele uma chance de tentar apagar o mal que
causou. E acrescentou, diante do gesto vivo de Líria, antes que ela pudesse
dizer alguma coisa – está disposto a te pedir perdão, pedir perdão a vocês
dois, e quer marcar um encontro lá em casa, se vocês concordarem. O silêncio
não impediu que Larissa repetisse o convite, dessa vez junto de Líria, abaixada
ao lado de sua poltrona. Não havia outro jeito, era preciso aceitar o
armistício. Depois se veria como as coisas iam ficar.
Para sua surpresa, Pôncio chegou
ao café e encontrou Lauro Munhoz sentado a uma das mesas laterais na companhia
de Mônica Lessa. Faltavam ainda vinte minutos para as seis horas. Procurou o
dono da casa com um rápido olhar, mas não o viu atrás do balcão. A mesa de
fundo lá estava, com a placa de reserva. Lauro ficou de pé para receber o
jornalista. Mônica não parecia contrafeita e cumprimentou-o até com certa
alegria. O senador esperava que ele sentasse, mas Pôncio preferiu mudar o rumo
que as coisas estavam tomando e convidou-os a segui-lo. – Reservei um lugar
mais discreto para nossa conversa, senador. Creio que vai gostar – e
encaminhou-se para a mesa escolhida, desejando que o gravador estivesse lá.
Munhoz pareceu surpreso, titubeou um pouco, mas a atitude resoluta e gentil do jornalista
não lhe deixava outra saída senão fazer sua vontade. Na verdade, Mônica parecia
mais surpresa que ele. Pôncio esperou que todos sentassem e ocupou seu lugar,
fechando um triângulo nada amoroso. Mantinha uma expressão cordial, porém um
tanto solene, e observava os dois, que recebiam mais luz que ele, graças a uma
lâmpada discreta e providencial, embutida na coluna, que casualmente lançava
seu foco sobre as duas cabeças. Esperou que Lauro falasse primeiro. Olhava-o de
modo encorajador, e o senador não demorou a começar um discurso cauteloso de
meias-palavras que o bom entendedor ia decifrando sem dificuldade. Mônica
estava muda e, agora sim, parecia meio embaraçada.
O ex-prefeito, ou prefeito do
estádio, como ficou conhecido na época do desastre – por conta do qual havia
perdido feio para o concorrente da oposição na eleição seguinte – tentava achar
uma brecha, talvez um momento em que o rosto de Pôncio estivesse menos atento,
os olhos menos perscrutadores, fitos nos seus. Limpou os óculos, pigarreou,
ajeitou-se na cadeira. – Sou todo ouvidos, senador – disse Pôncio, que começava
a achar aquilo divertido. Mônica dava sinais de inquietação, e ele percebia os
gestos acelerados com que acendeu um cigarro e logo o apagou com a sola do
sapato. – Lauro, disse ela, a certo ponto, sem conseguir se conter, deixa que
eu falo com ele. Pôncio vai entender.
Olhou para ela à espera de uma
surpresa. Suas intuições não costumavam deixá-lo na mão. Então o arquiinimigo
agora era de novo Lauro, nesse tom ameno, até meio meloso com que ela o
pronunciara. Mentalmente via os dois numa conversa que pouco a pouco ia se
tornando mais amistosa; via também alguma coisa que corria das mãos do senador
para as dela, e via um sorriso e uma troca de olhares. Esperou que ela por sua vez
se ajeitasse melhor, – Essas cadeiras parecem meio incômodas, não? – ele disse,
num tom inocente, e ela sorriu sem vontade, – Não se preocupe, está tudo bem.
Tomou fôlego – com muita graça, como Pôncio pôde observar – e continuou a falar
suavemente da antiga amizade – fomos como irmãos – e de sua inconformidade
diante daquele mal-entendido todo. – Cheguei realmente a pensar que Lauro havia
surtado, quando percebi que fugia de falar comigo e me deixava naquele sufoco,
sem recursos para salvar minha mãe, coitada, que Deus a tenha. De um relance,
pareceu a Pôncio que ela ia chorar, mas logo retomou o controle e continuou
falando sobre um sofrimento atroz e a falta que aquela amizade iria fazer em
sua vida, até que se revoltou e decidiu tomar uma atitude radical contra ele. –
Agi de acordo com meu senso de justiça, mas nós não somos mesmo ninguém para
julgar os atos alheios.
A esse ponto, acreditando que
tinha acertado em cheio em suas suposições, ele observou a expressão embevecida
com que Lauro Munhoz a contemplava. A coisa já foi longe, concluiu para si
mesmo, e agora passamos do suborno à chantagem emocional – uma mulher sozinha e
carente, um cara com cacife para reconquistá-la em nome do passado e uma ou
duas noites de amor bandido. Agora o senador tecia sua lenga-lenga e deixava
transparecer um coração tão sensível que Pôncio teve vontade de lhe dar as
costas. – Ninguém sofreu tanto quanto eu com aquela tragédia – ousou afirmar,
mas diante do olhar severo do jornalista aliviou um pouco o tom e emendou – a não
ser é claro aquelas pobres famílias enlutadas e os que morreram ou se feriram
gravemente no sinistro.
Um homem que chama aquilo de
sinistro numa conversa de café merece cadeia, pensava ele, quando Mônica
desferiu o golpe final sobre sua ira, que se tornava difícil de conter, – eu e
Lauro conversamos muito, durante horas, antes que ele tomasse a inciativa de
procurar você. Eu o encorajei, disse a ele que você é um homem de bem, um cara
ético, e que na certa compreenderá, afinal nem tudo na vida é o que parece ser,
e quando nos enganamos devemos ter uma chance de corrigir nossos erros. É o que
estou tentando fazer. E mesmo sabendo o quanto é difícil voltar atrás, depois
dos atos que cometemos, estou disposta a desmentir minhas declarações sobre o
Lauro – e os dois deram-se as mãos descaradamente.
Pôncio olhou para ele e perguntou
– quanto o senhor vai me dar para desmentir minhas declarações também? – ao que
o ex-prefeito teve um gesto difícil de definir, antes de enfiar a mão no bolso
do paletó e lhe estender um cheque de dois milhões de reais. Pôncio olhou a
assinatura do cheque, mas não era o nome de Lauro que constava na última linha
à direita, e a conta pertencia a uma firma de que nunca ouvira falar. Então
devolveu o cheque ao senador, – não aceito cheques, doutor Lauro, e este
indagou, com voz clara e cordial, – prefere então em espécie?
***
Na cantina da companhia, Líria
falava com Ana Rosa e Marlon sobre a reconciliação. – Você tinha dito que os
laços não tinham sido só desfeitos, que estavam cortados a tesoura e não havia
volta, lembrava Marlon, com certo mau gosto. – Foi um tombo, uma decepção.
Achei que Laio estava convencido de que era um corno, que tinha tomado aversão
a mim. – E o que foi que ele fez esse tempo todo? Ela agitou a cabeça numa negativa
enérgica, – não sei, mas também não estou interessada em saber. Nem durante o
tempo em que acreditava que não haveria volta possível me preocupei com isso.
Ninguém me informou de nada a esse respeito, e se alguma coisa de sério tivesse
acontecido na vida dele, eu na certa ficaria sabendo. – Ah, é verdade,
confirmou Ana, os abutres adoram uma fofoca. – Isso não foi problema para mim,
e não vai ser agora. Ele é um homem, pode ter se virado por aí, não vou sair
investigando. Também senti falta de uma trepada de vez em quando. Fui eu quem o
expulsou de minha vida, não tinha como reclamar. Se ele fez isso, acho que não
foi nada para durar, não criou outros laços, mas pode ser que tenha obedecido à
natureza, não sei. Lembrou então da natureza de Marlon, e olhou para ele, que
lhe pareceu pensativo. Mas o que estava dito não tinha como ser apagado. – Está
na hora, disse Ana, levantando e dirigindo-se à caixa.
10
A reunião dos quatro em casa de
Pôncio e Larissa foi marcada por um clima agridoce, que com o passar das horas
foi ficando mais doce do que acre e acabou em puro mel. Líria chegou com um ar
meio formal e Pôncio se esforçava para ser o mesmo de um ano antes, mas acabou
desistindo e sentou ao lado dela no sofá debaixo da janela, um pouco distante do
centro da sala. – Líria, acho que você já sabe por que fiz questão de convidar
vocês dois para virem jantar conosco hoje. Acabei de concluir um trabalho que
foi penoso e demorado, que me deu dores de cabeça e ainda vai dar algumas. –
Por quê? Você não ficou contente com o resultado? – Ah, sim, por esse lado
estou bem satisfeito e já comecei a preparar o livro sobre a história triste
desse estádio e os personagens que fiquei conhecendo por causa dela. A questão
é outra. Mas não é sobre isso que pretendo conversar com você agora.
Ela se empertigou e ficou
esperando. Sentia um pouco de vergonha pela perturbação causada por tantos
e-mails apócrifos, meu Deus, apócrifos, parece que estou falando da escritura
sagrada. Mas não era sua vez de falar. Queria ver a atitude do ex-amigo, quase
amigo de novo. De qualquer jeito, não pretendia voltar a mexer naquela sopa de
ódio e ressentimento.
— O que preciso muito te dizer,
Líria, é que agi como uma impulsividade desastrosa e fui bastante leviano
quando me intrometi na vida de vocês dois. Logo de vocês dois, que sempre foram
meus melhores amigos, as pessoas a quem sempre quis tanto bem, você nem
imagina, – está bem, Pôncio, vamos pular essa parte da conversa. Sei bem o que
nos custou essa leviandade de que você está falando, já tive vontade de matar
você, mas agora entramos em outra fase. Não vou fingir que não aconteceu nada,
mas acho que é tempo de ver as coisas com outros olhos. Me dá um beijo e vamos
tentar recomeçar. Trocaram dois beijos fraternais e voltaram para junto de Laio
e Larissa, que conversavam do outro lado. – Já ia chamar vocês para a mesa,
disse ela. Durante a entrada, Pôncio apresentou desculpas formais aos amigos,
sendo devidamente perdoado. Houve um brinde de champanhe, um presente à hora da
sobremesa e depois do café ele pegou o violão e cantaram juntos, lembrando um
antigo hábito que vinha do tempo de solteiros. Estavam um pouco altos, e a
reconciliação os tornava mais felizes do que imaginavam ser possível.
Na semana seguinte, Laio e Líria
aproveitaram um mês de férias por tirar e viajaram para a França, um projeto
antigo, do começo do casamento. – Acho que temos que agradecer ao Pôncio, ela
disse, sendo despertada por beijos e carícias num hotel da Provença. – Isso lá
é hora de pensar em Pôncio – Laio respondeu, apertando seu corpo junto ao dele,
tomado de urgência.
A fita gravada com a conversa
entre os três, no café Tal e Qual – que Pôncio não pretendia envolver na
história, em atenção ao proprietário, um homem de boa vontade – estacionara em
sua gaveta de documentos confidenciais. À falta de um cofre, ele a mantinha
trancada a três chaves com um dispositivo de segurança estrategicamente
colocado na parte de trás, por baixo da escrivaninha. Tinha avisado o
redator-chefe, mas Loredo – assim se chamava seu chefe – preferiu amadurecer a
ideia, antes de fazer alarde sobre o caso. – Vou consultar o Castro, do
jurídico. Ou melhor, vamos nos reunir com ele hoje mesmo, para analisar a
questão. É preciso prudência com essas coisas. Mas também é preciso aproveitar
enquanto a fita está quente. Te dou um retorno daqui a pouco.
Reunião marcada, logo após o
almoço Pôncio se dirigiu à sala do redator e lá permaneceu durante mais de duas
horas, sem celular. Não atendeu portanto à chamada de Mônica Lessa, que ligou
para ele duas vezes e deixou mensagens um tanto ofegantes na secretária
eletrônica do escritório. Também não recebeu o recado de um assessor de Lauro,
querendo marcar “um encontro de seu interesse”. Tentava acompanhar em todos os
detalhes os pareceres do Castro do jurídico e suas instruções quanto aos
possíveis riscos a que a operação toda expunha o jornalista e, mais
remotamente, mas não de todo remotamente, sua família. – Mas então o Lauro é um
bandido, chefe de quadrilha ou coisa assim? Castro olhou para ele através da
fumaça do parliament que nunca abandonava, – puxa, Pôncio, que foi que você
bebeu na hora do almoço? Um cara que se envolve em tais, digamos assim,
negócios é obviamente um bandido, um escroque, meliante que só difere do chefe
do tráfico na favela pela roupa que veste e pelo lugar onde mora.
Pôncio imaginou que o advogado o
considerasse um panaca completo, e tentou remediar a má impressão. – Para um
senador da república sequestrar a família do jornalista que revelou seus podres
à nação é de um baixo nível lamentável. – E ele é de um baixo nível lamentável.
Ele é o fruto de séculos de políticas de educação e de trabalho calculadamente
insuficientes e falhas, destinadas a manter os eleitores no nirvana dos
alienados e garantir duas coisas fundamentais aos lauros munhoz da vida:
carência econômica que os mantenha à mercê de uma esmola para sobreviver e
incapacidade para processar corretamente as informações que chegam até seus
ouvidos, muitas vezes já deturpadas. Eleitor não pode dispor de capacidade
crítica. Toda notícia que ouve deve ser imediatamente avaliada segundo um
critério único e exclusivo, que consiste em tentar descobrir em que os
acontecimentos podem servir a suas necessidades e como tirar algum proveito
deles. E os lauros alimentam esse estado de coisas, porque sem isso não
conseguiriam chegar aonde querem. A desgraça dos famintos é a fortuna dos
lauros, de modo que eles são os primeiros a incentivar essa atitude em suas
campanhas e nos contatos diretos com a turba. No senado, na televisão ou nas
declarações para o grande público, mantêm uma pose condigna e mentem tanto que
se mentira matasse não conseguiríamos manter um só poder constituído nesta
terra. Mas são esses eleitores que garantem a carreira e as venturas de nossos
legisladores, de grande parte do executivo e por tabela as dos juízes e
funcionários seus protegidos e corruptos como eles mesmos.
Loredo se mexia na cadeira, meio
ansioso, e Pôncio teve um leve arrepio diante do quadro dantesco. Não ignorava
a realidade crua da política de seu país, mas as palavras um tanto exaltadas do
Castro tiveram um efeito de quase susto sobre ele. Pensou na família, nos
filhos indo e vindo da escola, do inglês, da academia, da natação. Esteve a
pique de dizer que preferia então destruir a tal fita e deixar tudo assim mesmo
– mas assim mesmo como? Não poderia agora sair desmentindo a matéria que havia
assinado com tanto entusiasmo e que pretendia aproveitar para um livro que, ele
acreditava, lhe traria alguns trocados muito bem-vindos e, tinha esperanças,
elevaria seu nome à galeria dos jornalistas de primeira linha.
11
– Meu lindo, você vai me dar
muita sorte, eu sei que vai – Líria repetia, olhando o gatinho que cochilava
sobre a almofada, parte do enxoval comprado na véspera para fazer da vida de
Pascal, o gato, um paraíso completo. Encontrou-o no jardim de seu edifício,
aparentemente abandonado; não devia ter mais de um mês de vida. Era um bichinho
cinzento e gorducho, e os olhos azuis e redondos que olhavam para ela como se
pedissem ajuda a conquistaram sem remédio. Mais ainda se encantou quando o viu
pular de susto por causa das badaladas do relógio na sala. Pascal mamava numa
chuquinha de plástico, e era uma alegria sem nome ver o leite diluído em água
sumir em poucos minutos. Encarregou sua nova ajudante de alimentá-lo enquanto
estivesse fora de casa, trouxe vitaminas e brinquedinhos macios, dos quais ele
a princípio manteve uma distância muito prudente; mas logo depois, para êxtase
de Líria, fazia piruetas e dava corridinhas atrás da bola e mordia
delicadamente um panda minúsculo, que logo deixava de lado, mostrando sua
preferência inequívoca pela bola.
De repente a vida valia a pena de
novo, e ela se sentia subitamente mãe de todos os desvalidos. Na falta do filho
que não podia ter, criaria Pascal como um bebê, até quem sabe quando. Talvez
até adotasse um bebê de verdade, mas isso ainda era apenas um desejo sem forma
definida. Por enquanto, ela e Laio passavam pela fase deliciosa de inventar um
filho de todas as maneiras possíveis. E quando a noite ia chegando, ela corria
para casa e se preparava para a chegada dele como uma adolescente que ama pela
primeira vez, Cleópatra se banhando em leite de cabra para Marco Antônio, como
qualquer mulher muito apaixonada.
As mensagens de Mônica na
secretária eletrônica do escritório despertaram várias sensações em Pôncio,
algumas bem contraditórias. Primeiro, um tédio agudo, quase uma repulsa que o
teria enojado, caso logo a seguir não crescesse uma curiosidade avassaladora
que o empurrou para o telefone; não completou no entanto a ligação, porque uma
onda de sensatez o conteve, e ele pensou no caso do senador e da prudência que
seria bom manter quanto a essa mulher venal. Nesse momento alguém tocou a
campainha da porta e ele foi abrir com a expectativa de quem espera alguma
novidade. Quando a figura de Mônica apareceu à luz que vinha da janela em
frente, imaginou que tipo de proposta iria lhe fazer e de que missão Lauro
Munhoz a teria encarregado. Tudo foi tão rápido que depois seria difícil
reconstituir a cena – Mônica se colando a seu corpo, os dois aos beijos no sofá
e a transa intensa e apressada, logo repetida, prolongada e sonsa, em que ele
mergulhou inteiramente esquecido de tudo e de todos até adormecerem, exaustos e
relaxados.
Quando caiu em si, eram sete e
meia da noite, e a consciência do que tinha acontecido caiu sobre ele como um
golpe que o pôs de pé a caminho do banheiro. Ela o seguiu pouco depois, mas o
encantamento tinha cessado, e em lugar do fauno encontrou um sujeito
mal-humorado, que fechou a porta em sua cara. – Prefiro que vá se arrumar bem
depressa e siga seu caminho, ele disse, como quem dispensa uma rameira. – Eu volto,
ela avisou, e ele respondeu – melhor não, mas ainda ouviu a voz da moça
chegando através do ruído da água – volto sim, pode ter certeza.
Saiu do banho com a cabeça
pegando fogo. Ligou para casa e não teve resposta, mas logo em seguida Larissa
ligava para seu celular. – Ainda está no escritório? – É, ele respondeu,
vacilante. – Vamos jantar fora? A proposta da mulher o apanhou desamparado, sem
saber como voltaria a olhar para ela, como devia agir agora. O episódio da
tarde estava atravessado em seu corpo, em sua cabeça, e ele disse que sim, que
era uma boa ideia, quase sem saber o que dizia. – Os meninos foram para a casa
do Laio, parece que eles têm um gatinho agora, os dois ficaram lá – mas Pôncio
não entendia bem suas palavras, e de repente lhe deu um desejo desenfreado de
beijar Larissa. – Sim, meu amor, te encontro lá no Piacere.
Desligou o telefone com um misto
de desespero, medo e culpa, muita culpa. Naquela noite levou uma enorme rosa
vermelha para ela e não quis demorar no restaurante. Mal conseguia se
controlar, acariciando o braço da mulher sobre a mesa. Larissa olhava o marido
com uma espécie de deslumbramento, sentindo em seu toque uma força diferente,
como se do contato da pele dos dois se desprendesse um fogo brando e
persistente que ia tomando conta dela toda. Além da culpa, a escorregada da
tarde tinha libertado nele um homem ainda desconhecido, que trazia o desejo à
flor da pele e praticamente não deixava mais espaço para o cara sensato,
jornalista respeitável e pai de família austero que tinha sido até aquele dia.
Mas o que mais a intrigou foi que, na hora do amor, ele tremia e viu que havia
lágrimas em seus olhos.
O dia seguinte seria inaugurado
por um telefonema do Loredo, que o convocava – agora mesmo, é claro. – Alguma
coisa com a fita? que foi que houve? perguntou, sobressaltado, mas o outro
desligou sem responder. Pôncio chegou à redação em tempo recorde e achou que
tinham lhe passado um trote, porque tudo parecia calmo e as poucas pessoas
daquele horário trabalhavam normalmente. Foi à sala do Loredo, que o mandou
sentar e assumiu um ar de conspirador. – Munhoz está processando o jornal, mas
não é só isso, cara. Ele está processando você também. E a tal da Mônica avisou
agora há pouco que entra hoje com uma ação contra você por assédio sexual e
atentado violento ao pudor.
Pôncio sentiu os olhos
escurecerem por alguns segundos e ficou imóvel, olhando para o Loredo. A cena
da tarde anterior passou por sua cabeça como num filme. Inacreditável como
podia ter caído na lábia daquela vadia. Tinha sido de uma fraqueza
inconcebível, insuportavelmente idiota. Como não percebeu logo?
— Loredo, o que é mesmo que ela
alega? – perguntou para ganhar tempo e poder pensar melhor. – Ora, ora, cara,
ela avisou que possuía provas circunstanciais de que você a atacou ontem em seu
escritório, onde foi procurá-lo para discutir a situação. – Que provas, que
tipo de provas? Ele perguntou, tentando esconder o sobressalto. – Ah, não sei,
ela só disse que – bom, de qualquer jeito você vai precisar de um advogado da pesada.
O Castro, ia adiantando, mas Pôncio o interrompeu. – Loredo, vamos conversar
primeiro. Ontem – começou, debruçado na mesa do redator-chefe. Pensava em
Larissa, nos filhos, nos amigos. Pensava em tudo e todos ao mesmo tempo,
enquanto contava ao outro os acontecimentos da véspera.
12
Não havia jeito de Pascal se
acostumar com as batidas do relógio da sala de sua dona. Se estivesse dormindo
– e geralmente estava – dava um saltinho e virava os olhos azulíssimos para o
alto da parede. – Ele resolveu que o relógio é a ameaça maior em sua vida, e
Líria morria de rir por causa da postura defensiva do filhote, que acompanhava
os movimentos do pêndulo. Cinho e Paula passavam agora parte do tempo em sua
casa, e já andavam à procura de um bichinho daqueles, mesmo antes de consultar
a mãe sobre o assunto.
Laio também se divertia com as
gracinhas do gato, e mais ainda com o entusiasmo de Líria, que ele via com uma
indulgência paternal. Ultimamente no entanto a situação do amigo o preocupava
mais do que tudo. As manobras do Castro lhe pareciam ineficientes. Pôncio
andava abatido, com um olhar sombrio que não lhe caía nada bem. Estava
habituado a ver seus olhos determinados, e se havia um cara cujo rosto podia
ser definido como resoluto, esse era Pôncio. Mas o pior de tudo talvez fosse a
relação entre ele e Larissa, que, eles temiam, podia sofrer algum abalo com a
história do assédio a Mônica. – Não acredito, ela disse a Líria, logo no
início; ele não é um homem desse tipo.
Visto no conjunto do pacote,
porém, esse item era mortificante para ela. Teria preferido tudo a essa
acusação, mesmo injusta. Era incômodo, deixaria qualquer mulher constrangida, e
Larissa era uma pessoa naturalmente discreta e um pouco tímida. Mas naquele
momento, achou que devia pensar mais no marido do que em si mesma, e tentava
passar-lhe uma sensação de segurança que na verdade não sentia. Dispôs-se a
testemunhar a favor dele, procurava distraí-lo e propôs uma pequena viagem que
ele deixou em suspenso – quero ficar por perto, saber o que está acontecendo
dia a dia. No fundo, Larissa começava a sofrer de uma dúvida bem mais difícil
de suportar do que os processos e toda aquela chateação com o advogado e as
conversas intermináveis ao telefone, no escritório e até em casa: e se fosse
verdade? Por seu lado, Pôncio se inquietava cada vez mais com a perspectiva de
que ela tomasse conhecimento da tal prova circunstancial de que Mônica falava,
e que só podia ser mais uma fita nessa história. Uma bacia hidrográfica cheia
de afluentes que se multiplicam, como tinha dito o Loredo, com a testa franzida.
Excetuando-se as estrepolias de
Pascal e a lua-de-mel de Líria e Laio, nada parecia acontecer durante as
semanas que antecederam o desfecho da primeira instância. Um processo em geral
demorado, que afinal correu surpreendentemente rápido, o que só se explicaria
pelo envolvimento dos interesses de um senador da república. Pôncio atravessou
o tempo da espera numa espécie de hibernação afetiva que só Larissa conseguia
quebrar de vez em quando e que o protegia – ou reprimia? – da ansiedade
excessiva que ele não queria demonstrar. Laio diagnosticava a aparente
tranquilidade do amigo como autodefesa. – Tem andado como um robô, comentava o
Loredo, que também não esperava o resultado muito tranquilo.
Em parte se confirmaram os maus
prognósticos quanto a Pôncio, embora o resultado tenha sido favorável ao
jornal. Mônica teve sucesso contra o jornalista, considerado culpado dos crimes
de que ela o acusava. – Vamos para a segunda etapa, animava-o o advogado, nada
está perdido. Tenho certeza de que vamos sair bem dessa, a sujeitinha vai ver.
Já encaminhamos seu habeas corpus ad
subjiciendum, cara, não há por que se preocupar. Você não vai pagar por um
crime que não cometeu ou eu não me chamo José Getúlio de Castro Almeida.
Pôncio tinha contado o episódio
todo a Larissa, que o escutou sem interrupções e aparentemente muito serena,
como se estivesse ouvindo uma história de terceiros. Ela não pode ser tão
controlada assim, ele pensava, enquanto descrevia a cena, até que uma espécie
de engasgo o paralisou e os dois se abraçaram. Alguma coisa ali soava como uma
perda. Pôncio queria saber o que a mulher estaria sentindo, mas Larissa parecia
um tanto catatônica e não disse nada. Naquela noite fizeram um amor quase
violento.
— Homens como o Pôncio não podem
pisar em falso, comentava Loredo, em conversa com o Castro, na redação. Não
sabem como agir, não têm a manha. – Coisa rara, disse o Castro, mas há uma
razão séria para isso: eles se reprimem demais e nem têm consciência disso. Acabam
numa espécie de redoma invisível, internalizam de tal forma seus princípios
morais que se tornam prisioneiros de alguma coisa que só depende deles, e quase
sempre o corpo reclama e quer seus direitos. O resultado é que qualquer Mônica
os faz escorregar feio. – Não é fácil, considerava o Loredo, ela é uma mulher e
tanto, vamos reconhecer. Castro espichou os lábios e balançou a cabeça, – se é.
– Mas não acho que Pôncio seja por assim dizer um cara prisioneiro de
escrúpulos. Não é, não. É preciso perceber a diferença entre um cara puritano e
um sujeito de caráter. Ele não tem a manha porque não tem o hábito, não por
falta de, digamos assim, talento para a coisa. Conheço o Pôncio há mais de
trinta anos, nos conhecemos moleques ainda, vizinhos no Grajaú. É temperamento
dele, sempre foi assim. As namoradas que teve se contam nos dedos, e com cada
uma delas ele foi fiel e sincero. – Um santo, disse o Castro, levantando-se e
pegando a pasta. Então o castigo é de todo imerecido. Vamos tratar com carinho
desse caso.
A situação de Pôncio se agravou
na semana seguinte com a notícia do assassinato de Mônica Lessa, no apartamento
do Leblon para onde se mudara menos de um mês antes. Estampadas em todos os
jornais, e logo em algumas revistas, fotos da arquivista morta a tiros na
própria cama, conseguidas por um fotógrafo furão; muitas outras fotos, oficiais
ou flagrantes em festas e boates, fotos de biquíni e desfilando modelos
exclusivos apareciam em praticamente todas as publicações. De um dia para outro
o caso se tornou o assunto do momento e invadiu os noticiários de televisão e
rádio, divulgando detalhes, alguns sem nenhum interesse concreto, apenas porque
o público supostamente queria saber tudo sobre a moça. Uma celebridade póstuma,
como disse o Loredo.
Uma denúncia anônima, vinda pelo
telefone, apontava o jornalista como mandante do crime, e o Castro arregalou os
olhos diante do fato. Isso atrasava o processo e ia criar maiores dificuldades
ainda para provar a inocência de Pôncio, que em certo momento se flagrara como
o inocente, e quase tinha perdido o fôlego com um acesso de riso. – Que foi?
quis saber Loredo, espantado. Foi difícil explicar ao outro o que acontecia em
sua cabeça, porque quanto mais tentava, mais ria.
O riso às vezes é um modo de
liberar um peso que vai se tornando insuportável, como ser considerado um
criminoso e ver tudo meio nublado pela frente, sentir-se ameaçado de sofrer por
alguma coisa que não se cometeu. Há mesmo uma teoria do riso que nada tem de
alegre, e o conceitua como uma espécie de transbordamento do que não se pode
mais conter; a água que se acumula em um balde fatalmente irá transbordar,
quando seu volume ultrapassa as bordas. E a água que transborda e escorre
livremente pelo chão ameaça encharcar o que está pelas redondezas; já não se
compara à contenção de um aquário ou de um lago, capazes de acalmar e dar
prazer a quem os contempla. Um cara que ri descontroladamente desnorteia suas
testemunhas, preocupa os amigos e corre o risco de passar por louco com todas
as consequências desagradáveis que se seguem.
Pôncio não chegaria a esse
extremo, no entanto. Segurou o riso antes que pudesse agravar sua situação. –
Não se preocupem, meninos, disse, enxugando os olhos, foi só um ataque
passageiro. – Já sei o que vou fazer, disse o advogado, batendo em seu ombro.
Você precisa de um bom detetive. – Nós precisamos, corrigiu Loredo. – Sim, como
você preferir. Ligou o celular e se afastou deles alguns passos. Voltou minutos
depois com um sorriso de alegria estampado no rosto meio quadrado, que lhe
havia rendido o apelido de Italiano, nos tempos de faculdade. – Cosme está
chegando, anunciou, triunfante. Ninguém perguntou nada e Pôncio declarou que ia
tomar um café. Loredo foi com ele.
Cosme, o detetive, era um sujeito
magro, moreno, com cara de caboclo nortista; tinha uns olhos rasgados, grandes
e brilhantes de chamar a atenção logo à primeira vista. Havia também o sorriso,
uma iluminação de dentes branquíssimos, que às vezes ele exibia com uma
expressão de alegria interior capaz de impressionar um pouco. Fora esses
pormenores, o cara era econômico com as palavras e falava com voz mansa,
pausada, uma fala descansada como se não pertencesse ao mundo a que devia
pertencer por sua profissão. Pôncio ficou um pouco impressionado com ele, mas
não muito tranquilo. O sujeito lhe pareceu estranho, talvez um excêntrico, e
ele receava perder tempo, num momento em que cada minuto era crucial. Livrar-se
das acusações que agora pesavam sobre si passou a ser uma obsessão, uma aflição
tão grande que lhe tirava a capacidade de trabalhar e concentrar-se em qualquer
outra coisa. Foi preciso um esforço sobre-humano para recuperar o autocontrole.
A primeira reunião com Cosme e o
Castro, na manhã seguinte bem cedo, no entanto, lhe trouxe um pouco de sossego,
ou talvez nem isso, mas de qualquer modo um princípio de tranquilidade. O
detetive era um cara zen, mas não desligado da realidade. Estava atento, bem
informado sobre tudo que dissesse respeito aos fatos e seus raciocínios
pareciam perfeitamente lógicos e bem fundados. Ao fim desse encontro, Pôncio
levava mais fé em Cosme do que no Castro, e o rapaz parecia ter percebido isso.
Passada a primeira semana sem notícias, ele lhe trouxe um relatório que não só
inocentava seu cliente com um álibi imbatível como forneceu material para que o
advogado conseguisse livrar o jornalista da acusação, agora comprovadamente
falsa. Aliviado e mais tranquilo, Pôncio ardia de curiosidade para saber com
certeza de onde partira aquele imbróglio. O que afinal nem foi tão difícil.
Difícil ia ser inocentar da culpa
o mais provável mandante do crime, cujo álibi, além de confuso, era
inconsistente. Os indícios mais evidentes, que Cosme ia descobrindo e
confirmando um a um, encontravam no entanto uma barreira de subterfúgios
capazes de adiar o julgamento e as manobras legais que o dinheiro pode comprar.
— Agora não dá pra sossegar antes
de jogar esse sujeito na cadeia, dissera o jornalista a Loredo. Mas o
redator-chefe se mostrava reticente. – Ele tem vários queijos e muitas facas na
mão – o que lhe soou um tanto enigmático. Não vai ser tão simples como nós
gostaríamos. Mas vamos continuar tentando. Tanto mais que agora abriram uma CPI
para averiguar os atos do ilustre. Pode ser que a maré esteja virando para o
Munhoz. Embora a gente esteja do lado mais fraco, do lado de lá já está bem
desgastado. Pode ser que a Mônica acabe conseguindo a vingança que tanto
queria. – E se não me engano, nunca deixou de querer, completou Pôncio.
13
Marconolo – nem Marcondes nem
Marcolo – era um homem de ar austero e muito moralista. No momento em que a
reportagem de Pôncio trouxe a público o lado B de Lauro Munhoz e a vida do
jornalista foi envolvida num ciclone, ele perdeu o sono e o sossego. A mensagem
que endereçou ao jornal fora uma encabulada tentativa de repor as coisas em
seus devidos lugares. Não conseguia ver senão a verdade – ou o que lhe parecia
ser a verdade – estampada naquela reportagem de um veículo de grande
circulação, motivo de noticiários um tanto desencontrados e boatos de efeito.
Sabia que ao menos parte da história publicada antes era falsa. Uma joia falsa
muitas vezes faz mais vista que uma verdadeira, guardada no escurinho de um
cofre. Mas além de escrupuloso quanto à verdade dos fatos, Marconolo era também
um homem tímido, que tinha horror à publicidade. Não suportava a ideia de se
expor à vista dos outros, ter sua cara exibida em uma foto ou num vídeo. Ainda
mais naquele contexto perigoso. Suava frio, imaginando as consequências que
poderiam advir de uma declaração sua. A coisa era genética, herança de um pai
professor universitário e tão amedrontado com a vida que literalmente morrera
de medo, durante a ditadura militar, quando o AI5 abriu espaço para que colegas
seus fossem indiciados por incitar os alunos a práticas subversivas. O velho
foi fulminado por um infarto no momento em que recebia a notícia da prisão de
um de seus pares.
Olhando por esse ângulo,
compreende-se que Marconolo suasse e tremesse, só de pensar na hipótese de uma
denúncia contra um senador da república. E a coisa iria até mais longe, caso
viesse a público o que ele sabia sobre um dos depoimentos decisivos de que a
reportagem se valera. Marconolo tivera um cargo de confiança na prefeitura
daquela época. Toda desídia, toda mentira, toda desonestidade lhe eram
repulsivas, e no entanto convivera com essas fraquezas do ser humano durante os
anos em que atuara, a bem dizer de olhos fechados, olhando em outra direção para
não ver o que acontecia diante dele, a consciência torturada e oprimida,
sentindo-se um verme. Deixou o cargo altamente remunerado por puro asco.
Preferiu voltar ao posto antigo de almoxarife de um depósito de materiais, onde
receberia duas vezes menos.
Marconolo porém sabia muito mais.
Sabia também de falsidades ideológicas, tramas envolvendo segredos de alcova e
até do destino de elevadas verbas malversadas. Seu medo era certamente
patológico, mas não deixava de ter algum fundamento, levando-se em conta o que
acontecera com Mônica Lessa, que ele e Lauro Munhoz conheceram ainda muito
jovem.
Enquanto, a pedido de Cosme,
Pôncio fuçava as mensagens dos meses anteriores, sobretudo aquelas das semanas
que precederam a publicação da história do desastre do Rio Comprido, Larissa
remoía ainda a fita da transa com Mônica – aquela devassa sem caráter, que Deus
a tenha – e tentava amenizar a úlcera do marido, que ameaçava ressurgir, anos
depois de ter lhe dado um susto daqueles. – Cheguei a pensar num câncer de
estômago, contava ela a Líria e a Pascal, que a olhava com uma atenção notável
para um gato. Tinha ido buscar os filhos de volta para casa, porque esses
meninos não fazem mais nada senão babar o Pascal, nem estudar direito estudam
mais. Líria sorria, encantada, e Pascal se enroscava em seu braço, meigo, como
se entendesse o drama da amiga de sua mãe adotiva. – Às vezes parece que ele
ri, quando os meninos vêm brincar. Um tanto desconcertada, Larissa sorria
amarelo. – Tenho que voltar, Pôncio não demora e tenho que preparar a dieta
para o jantar. Se deixar por conta dele, não sai do computador e não larga os
noticiários. – Que horror, isso, comentava Líria. A gente vê vocês hoje à
noite. Laio já programara um bom filme, desses que fazem esquecer um pouco as
agruras da vida, e iria com a mulher passar umas horas na casa dos amigos.
Larissa dirigia um pouco
distraída, e Cinho teve que conter um pequeno grito de susto quando um caminhão
de mudanças por pouco não os abalroa num cruzamento onde o sinal acabara de
fechar para eles. A mãe se voltou para o bando de trás, ela mesma assustada, –
e aí, tudo bem? Desculpem, não reparei no sinal, falha nossa. Os dois se
debruçaram no banco da frente. – Mãe, nunca vi você dirigir assim, disse ele,
como um adulto. Paula sorriu e voltou a se encostar no banco. – Você bem que
podia deixar a gente ter um gatinho. Larissa não respondeu, muito atenta ao
sinal e um pouco perturbada por uma inquietação que não saberia explicar nem
eles entenderiam. – É mesmo, mãe, Cinho reforçou, voltando a ser um menino de
onze anos.
Chegaram sem maiores incidentes. Os
dois subiram para o banho e Larissa correu para a cozinha, porque o marido não
tardaria, cansado, abatido e com fome, talvez, embora ultimamente seu apetite
andasse bem fraco. Pode ser que nem só o apetite, Larissa se pegou pensando. O
mal-estar inexplicado continuava a perturbá-la. Tanto que acabava de fazer um
corte no dedo, e ficou olhando o sangue pingar e escorrer como um riachinho
novo pelo granito da bancada.
14
Loredo costumava frequentar a
casa de um cara chamado Canhedo, um novo-rico sem deslumbramento, ainda com
hábitos de homem do povo, cujo maior prazer na vida era reunir amigos e
conhecidos e cozinhar para eles. Ocupara grande parte do espaço ao lado da casa
com uma espécie de cozinha do gourmet,
equipada com uma adega respeitável, dois fogões, uma enorme churrasqueira de
tijolos, grelhas, freezers,
geladeira, uma ampla despensa, bancadas que se estendiam a toda volta e todo tipo
de temperos e especiarias. Um imenso galpão, caprichosamente coberto de telhas
sobre um bonito arcabouço de madeira lustrada, sob o qual havia mesas de quatro
lugares e uma outra, mais comprida, para os dias de comemorações íntimas, onde
oferecia almoços e jantares para cerca de quarenta a sessenta pessoas.
Canhedo conhecia a nata da zona
Sul, e em seu galpão era fácil encontrar secretários municipais ou estaduais,
vereadores, juízes, autoridades policiais ou clericais, lado a lado com
violeiros, tecladistas ou percussionistas, além de pés rapados que curtissem
música, gente de boa voz, artistas ou escritores. Vez por outra, um governador
e com mais frequência o prefeito da cidade podiam ser encontrados lá, numa
noitada um pouco exótica, mais divertida e agradável que uma boate. Além do
ambiente eclético e do talento de anfitrião, Canhedo dava um tom família a suas
reuniões, onde vips e plebeus podiam levar suas mulheres e onde os limites de
cada um para beber eram respeitados. Não que fosse careta, ao menos quanto a
drogas, por exemplo. Ele mesmo bebia seu vinho com classe e, se algum dia usara
aditivos do tipo, estava livre deles. Nunca no entanto se aborrecia ou excluía
alguém de sua casa por causa de um baseado ou de uma cheirada discreta. Mas
havia certa moderação pairando no ar, de modo que todos se sentiam à vontade.
Além de tudo, no entanto, o que
atraía grande parte daquela gente era a comida apreciável que o dono da casa
sabia preparar, farta e bem feita, embora sem pratos muito sofisticados. O
paladar do homem era excelente, e seu tempero afamado entre chefs de
restaurantes de respeito. Ser convidado pelo Canhedo significava almoçar ou
jantar como um príncipe do povo. Quando alguém que não o conhecesse bem queria
saber por que não abria um restaurante, ele sorria um pouco misterioso, o rosto
redondo e moreno alargado, e mudava de assunto com uma sutileza inesperada para
um personagem com aquela aparência um tanto rústica.
Ninguém sabia ao certo de que
vivia o Canhedo. Que era rico, ninguém podia duvidar, diante do casarão cercado
por um terreno razoável, numa ruazinha escondida atrás da Epitácio Pessoa, no
coração do bairro da lagoa Rodrigo de Freitas, e diante da prodigalidade com que
tratava seus convidados. Mas seu passado e sua ocupação eram assunto de muita
especulação, embora bem poucos soubessem tudo sobre sua vida, distante do
clichê do livro aberto.
Loredo era um desses poucos.
Conhecera o homem ainda saindo da adolescência, filho de gente humilde,
retirantes do Acre, onde uma ação desastrada do governo estadual destruíra sua
casinha de lata e madeira para deixá-los na rua poeirenta e esburacada. Numa
viagem pelo Norte, Calixto Loredo, seu pai, funcionário público estadual no Rio
de Janeiro, condoído com a situação da família, tinha dado um jeito de trazer
os quatro – Silvino Canhedo, a mulher e dois filhos com cara de fome. Acomodou
os quatro nos fundos da casa em que ainda viviam os avós do Loredo, num
subúrbio não muito distante, e colocou Silvino e a mulher como contratados a
serviço do governo, além de conseguir escola para os meninos e mais tarde uma
formação profissional eficiente, que transformou Canhedo filho num soldador de
respeito e seu irmão menor num eletricista de sucesso. Isso lhe valeu uma
gratidão sem limites e a amizade que cresceu entre Loredo e o garoto mais
velho, agora esse gourmet afamado.
Pôncio esteve algumas vezes com o
chefe na casa da lagoa, e ultimamente levara Larissa e os meninos para um
almoço regado a vinho chianti da
melhor qualidade e cerveja muito gelada. Tinha sido um sábado divertido, de
conversa amena e boa música, por conta de um conjunto recentemente incorporado
ao grupo, que crescia sempre. Mas o que o redator-chefe visava não era só amenizar
aquele período difícil da vida de um de seus repórteres mais destacados. Havia
um interesse, cada vez mais claro para eles, no convívio dos amigos juízes e
altos funcionários da segurança. Havia até um novo agregado, o Hartmann,
comandante da Polícia Federal, pessoa de convívio muito agradável, entendido em
história e sociologia, fala bem articulada e maneiras polidas, que encantou
Larissa e deixou os jornalistas muito bem impressionados. A casa do Canhedo
tinha esse dom de abrir novos caminhos, e não era só a comida de qualidade a
responsável pelo sucesso e pelo crescimento de suas reuniões. E o sucesso era
tanto que, pouco tempo depois da adesão de Pôncio ao grupo, os ágapes tinham
ficado restritos aos sábados. – Não há tatu que aguente, desabafou o Canhedo
para seu irmão postiço. Mas para os amigos do peito não tem dia nem hora – e
isso incluía Pôncio e família.
A mensagem de Marconolo para
Pôncio dizia apenas isso: sua história sobre a tragédia do estádio está
incompleta. Nenhum indício de que o remetente pretendesse ajudar a esclarecer a
parte que faltava, nenhum oferecimento de telefone, nada mais que isso: uma
história incompleta. Aquele cara inibido, meio fóbico, não resistira a enviar um
e-mail. Não se arriscava além disso, e só esse ato já lhe havia custado uma
cruel luta consigo mesmo, que a consciência vencera, porque além de fóbico
Marconolo era escrupuloso em seus atos. Media e pesava prós e contras, voltava
a medir e pesar quantas vezes a dúvida o maltratasse. Havia uma espécie de
prazer neurótico nesse processo, no vaivém da vontade, nas idas e vindas que
pareciam percorrer, incessantes, todo seu corpo.
O teor da mensagem no entanto
chamava a atenção de Pôncio, mais agora do que no momento em que a recebera. Envolvido
pelas investidas de Lauro Munhoz e instado por Cosme, tinha examinado
detidamente cada uma das mensagens conservadas na caixa de correio sobre a
reportagem. Selecionou então as que lhe diziam alguma coisa e, com a ajuda de
seu detetive caboclo, elegeu como a mais interessante essa que falava de uma
história incompleta. Para mal dos pecados do pobre Marconolo, Cosme queria
saber de quem se tratava, onde poderia ser encontrado esse sujeito de nome
estranho e por que afinal enviara esse recado sucinto e enigmático sem ir mais
a fundo em sua observação. – É preciso dar atenção a essas aparentes
insignificâncias, coisas inexplicadas, por trás das quais há uma explicação que
pode ser desde falta do que fazer de um remetente boboca a um dado decisivo que
ele não explicitou. – Mas se fosse tão importante, por que o cara não entraria
nos detalhes, afinal? – Vai saber por quê, disse o outro, encolhendo os ombros.
As pessoas funcionam de modo muito específico, e você ficaria surpreendido se
pudesse adivinhar o que se passa em cada cabeça. – Tenho uma ideia disso,
respondeu Pôncio, pensando em Mônica Lessa. Eu mesmo – ia dizendo, mas se
interrompeu, porque agora pensava no caso de Líria e na mancada que ele mesmo
fora capaz de dar naquele dia em que quase tinha destruído as melhores amizades
de sua vida. – Um cara que se dá ao trabalho de endereçar uma frase dessas a
alguém, num caso como esse de sua reportagem, pode ser um lunático querendo
aparecer a qualquer custo, mas também pode ser uma testemunha valiosa, que não
teve a coragem suficiente para arriscar mais do que isso. Nesse caso, ele diz
uma verdade importante sem identificar suas razões, deixa uma pulga atrás da
orelha, e o único jeito é correr atrás dessa testemunha. Vai ver é isso que ele
deseja.
Pôncio concordava com o detetive,
e Castro também reconhecia a necessidade de buscar esclarecimentos que
justificassem a mensagem. – Tudo nos interessa nesse caso, precisamos da
verdade mais cabal, em todos os pormenores. Quanto mais detalhes e explicações
de todas as circunstâncias, melhor para nós – para você em especial, Pôncio.
No momento em que Pôncio redigia a
resposta solicitando esclarecimentos a Marconolo e encarecidamente explicava
suas razões profissionais para tal pedido, sem entrar em detalhes de justiça e
no envolvimento direto de Munhoz na história (Castro lhe explicara que esses
dados podiam espantar a presa), sua mulher chorava, sozinha em casa, trancada
no quarto, inteiramente dominada por uma aflição angustiada que não podia
partilhar com o marido, já sobrecarregado de problemas. Pouco depois, como se
adivinhasse, Líria chegava a sua casa trazendo um belo quiche para o almoço,
que pretendia partilhar com a amiga. As duas se abraçaram e choraram juntas,
porque, ao contrário de Larissa, ela e o marido ainda viviam a doçura da
reconciliação, e Líria podia avaliar a agonia da outra, convencida de que
Pôncio se desinteressara dela de uma vez por todas. – O pior de tudo, soluçava
a mulher do jornalista, é que nem ao menos posso falar com ele sobre isso
agora, e pode ser que tudo seja só por causa dessa maldição desse caso do
senador. Mas como é que eu posso ter certeza? Ele mal olha pra mim, Líria, e eu
não vou aguentar se o Pôncio me deixar. – Ai, sua boba, deixa disso, respondia
a amiga, as lágrimas escorrendo aos pares, você vai ver que não é nada disso.
Bem no íntimo porém, Líria temia tanto quanto ela que fosse verdade.
15
Loredo preparara uma reunião
informal com o Castro e dois juízes amigos do Canhedo, em volta de uma galinha
ao molho pardo que os deixaria predispostos a fornecer todos os esclarecimentos
necessários e ainda solidificava a amizade recente, selada a cerveja gelada.
Dias depois eles se encontrariam de novo, dessa vez na presença do comandante
Hartmann, de Pôncio, incluído agora na roda dos ilustres, e do estrogonofe de lagosta
do Canhedo, que era de lamber os dedos. O redator-chefe criava um ambiente
favorável a seu repórter, mas não reivindicava privilégios. Sequer pensaria em
prevaricar, oferecendo qualquer presentinho aos magistrados ou ao comandante,
um cara que transpirava lisura e lealdade. Para todos os efeitos, tratava de se
informar em detalhes sobre as chances de Pôncio e, entre uma e outra pergunta,
introduzia observações cuidadosamente formuladas para impressionar bem os
ouvintes.
Loredo aliás não descansava,
enviando mensagens pelo correio eletrônico, fazendo ligações, reunindo-se com a
assessoria jurídica. O caso de Pôncio mobilizava um pequeno exército solidário,
enquanto a imagem pública de Lauro Munhoz se deteriorava a cada dia – diga-se a
bem da verdade, com a ajuda do Jornal
e de uma rede ligada a partidos adversários. Das sombras do esquecimento
surgiam desafetos insuspeitados para contribuir na divulgação de excessos de
todo tipo praticados pelo ex-prefeito, agora conhecido como o ogro, graças a sua fama e a sua cara
de poucos amigos, de sobrancelhas felpudas. Como dizia porém o Castro,
assumindo a pose de causídico padrão, – não devemos nos iludir com esse repúdio
à figura do senador. Estamos fartos de ver corruptos premiados e a iniquidade
tratada como virtude. – Isso parece coisa de Rui Barbosa, ria Cosme.
Marconolo só respondeu às
mensagens depois de receber a quarta ou quinta. Assim mesmo, seu silêncio só
foi quebrado para repetir o já dito. Cosme e o Castro então se mobilizaram para
descobrir seu paradeiro e partiram para uma visita informal. Foram e tornaram a
ir até a ruazinha sem saída na Tijuca, mas não havia ninguém em casa. Na
terceira investida, uma empregada os atendeu e informou que o patrão estaria de
viagem. Marconolo escorregava como quiabo. Castro conseguiu então um mandado de
busca. Intimidado com o rumo que as coisas iam tomando, resolveu aparecer.
Canhedo, o gourmet,
revelou-se uma figura ainda mais singular e cheia de truques do que o próprio
Loredo imaginava. Cosme não tardou a perceber a versatilidade espantosa com que
ele circulava das bancadas de sua cozinha para os bastidores da prefeitura.
Tinha prometido ao amigo de infância que havia de encontrar o caminho para
provar até que ponto a administração do Munhoz tinha sido desonesta e omissa.
Lembrava-se de cada mancada do ex-prefeito, de cada esperteza, por causa das
interferências que criaram dificuldades a seu trabalho, na época ligado aos
estaleiros que funcionavam – alguns ainda hoje em atividade, embora seus ganhos
tenham diminuído sensivelmente – no estado do Rio de Janeiro. Antes que Loredo
esfregasse um olho, Cosme tinha conseguido de Canhedo informações sobre sua
vida e suas andanças pelos estados do Brasil até 1998, quando resolveu ficar no
Rio de uma vez por todas.
É verdade que os soldadores –
profissão original de Canhedo – eram até então bem remunerados em serviços de
construção naval, que exigiam deles uma formação impecável e lhes rendiam horas
extras e serviços em condições especiais, com adicionais por insalubridade e
insegurança. Parte da renda do gourmet
viera daí, mas o detetive logo percebeu que Canhedo não era homem de se
contentar com o possível. Abriu ele mesmo uma empresa do ramo, trabalhou por
contrato para o setor naval durante mais de vinte anos e levou o calote de praxe
do governo federal. Um processo que rolou na justiça durante mais de cinco
anos, até que, um ano antes, teve ganho de causa para o reclamante que, deitado
em sua rede do norte ao lado de Rainha, como chamava sua atual namorada,
comemorou com ela as benesses que o futuro prometia. Eram mais de três milhões
de reais, mais juros e correção monetária, garantidos por um contrato cujo
original ele guardava em seu cofre-forte, instalado por trás da adega
climatizada de sua cozinha.
Munhoz entrava nessa história
como um vilão que, conhecendo os altos valores de seus contratos, multara
seguidamente sua empresa por instalações insalubres – uma alegação fantasiosa, naquele
ramo de atividade, e uma intromissão indébita na jurisdição, que de direito
pertencia à fiscalização federal – e uso indevido de terrenos municipais não
autorizados.
Havia ainda entre os dois uma
pendenga antiga, dos anos 70, quando haviam se encontrado em Salvador, Munhoz
em viagem de turismo e Canhedo, recém-casado, naquele tempo ainda empregado de
um pequeno estaleiro, cuja mulher fora seguidamente assediada pelo jovem
político que Lauro ainda era. Os dois tinham trocado uns socos sem maiores
consequências, separados aos dez ou quinze minutos de briga pela turma baiana
do deixa-disso, certa de que não valia a pena apostar em nenhum dos dois, já
que não pareciam ferozes o suficiente para divertir a galera. Só isso talvez
não justificasse a prolongada implicância do político, mas o prefeito era do
tipo popularmente conhecido como carne-de-pescoço. Não desistia fácil de
prejudicar um desafeto, e com o Canhedo a coisa rendeu até que, cansado de ser
incomodado por aquela autoridade mesquinha, o empresário decidiu acionar a
prefeitura por abuso de poder.
Canhedo parece ter nascido com o
traseiro virado para a lua. Apoiado por amigos influentes, ganhou também essa
ação – coisa de um acumulado de três centenas de milhares de reais. Descobriu
nesse período que o prefeito conseguira reunir um número notável de inimigos,
durante sua gestão, e Cosme gostou de saber disso. Munido de endereços e nomes,
partiu para suas investigações e teve grande sucesso em ao menos seis delas.
Tinham agora mais seis testemunhas contra o
ogro.
16
— Que nome esquisito, comentou
Líria, que acabava de dar o banho do mês em Pascal e o enrolava na toalha com
um capuz de orelhas de gato e bigodes. – Esquisito porém fundamental para o
caso do Pôncio, respondeu Laio, que lia o jornal, terminado o café da manhã. –
Olha como ele treme, tadinho, dizia ela, ligando o secador no grau mais fraco.
Laio olhou distraidamente na direção do gatinho. – Está ficando grande,
observou, deixando o jornal de lado e acariciando Pascal. Esse gesto deixava
Líria muito enternecida, e ela se pendurou em seu pescoço para beijá-lo. Dentro
do cercadinho, o gato sacudiu a cabeça e pulou a grade sem ser percebido. Mas
sua dona só iria procurar por ele uns quarenta minutos mais tarde.
O depoimento de Marconolo trouxe
uma novidade que surpreendeu todo mundo: Mônica Lessa nunca tinha estado no
estádio do Rio Comprido e muito menos assistira ao começo do desastre naquela
tarde de dez anos antes. Cosme deu de ombros. – Isso agora não faz nenhuma
diferença, comentou, com seu ar um pouco blasé.
Ela mentiu só pra poder incriminar o Lauro. Foram amantes durante uns dois anos,
aparentemente um dos primeiros casos mais sérios da vida dela, que tinha
dezessete anos quando começaram a se encontrar. – Foi uma mentira inútil,
observou o Castro, já que ela conhecia o episódio por seu envolvimento com ele.
Na certa quis encobrir o caso entre os dois para se proteger.
Marconolo contou também que
Mônica só começara a trabalhar na prefeitura já no final da ligação com Lauro,
quando atingira a maioridade e seu protetor agitava a campanha para a eleição
que iria ganhar. Lauro a deixou de lado por uma vereadora de grande força
política, sem a qual dificilmente teria conseguido o posto. Mônica nunca o
perdoou. Ultimamente, tinha aceito o assédio dele para se vingar de Pôncio, por
quem estava muito interessada e que a evitava. Além da posição, o senador lhe
oferecia altas vantagens financeiras, um emprego em seu gabinete e um estilo de
vida irrecusável. – Você ainda é muito moça, minha querida, e eu nunca deixei
de querer a sua volta – ele tinha dito, após um jantar opulento em sua suite luxuosa.
Depois da famosa transa que quase acabara com o casamento de Pôncio e Larissa,
ela pretendia entregar a fita ao senador, com quem tinha reatado e de quem
ganhara o apartamento no Leblon. Novamente, esperava status e dinheiro pela ligação com Lauro. Mas não contava com a
desconfiança dele, que temia ser traído por ela durante os depoimentos. Mônica
sabia demais, e punha em risco sua segurança e a impunidade com que ele
contava.
Quanto a conseguir testemunhas em
favor de Pôncio, Marconolo se propunha a indicar dois ou três nomes de antigos
colegas de trabalho e, embora titubeante e suado, não teve outro jeito senão
confirmar que aceitava depor contra Lauro. Pouco depois de sair da sala do
Castro, ele caía com uma vertigem. Cosme sugerira que denunciasse Lauro Munhoz
como mandante do assassinato de Mônica Lessa, em troca de proteção da justiça.
Positivamente demais para ele.
Larissa atendeu o telefone na
tarde do domingo e não conseguiu responder logo. Uma voz familiar, que ela logo
identificou como senda a de Hartmann, lhe propunha um encontro de amigos, num
bar do centro, e logo depois se identificava, – desculpe, Larissa, é que ando
com a cabeça meio fora de órbita, ele disse, rindo. – Ah, sim, comandante. –
Como assim, comandante? Por favor, me chame de Roberto. Amigos não usam esse
tratamento tão distante. Larissa sentiu o coração se agitar e não soube
exatamente como responder. Precisou de alguns segundos para tomar a decisão, e
disse que sim, quer iria ao bar do centro. Não estava segura do que iria fazer,
mas não via como dizer não sem contar com um bom álibi. Primeiro era preciso
ouvir o comandante, Roberto, um homem tão fino, tão encantador, que a
impressionara tanto, embora – bem, era preciso dar tempo ao tempo. Pensou em
Pôncio e, como uma sensitiva, não se surpreendia pelo comandante ter aparecido
exatamente naquele momento. Não fosse Hartmann, quase certamente apareceria
algum outro homem capaz de lhe despertar tais sensações.
Falaram-se como velhos amigos,
irmãos, e Pôncio declarou que estava cansado demais e queria dormir muito, até
umas onze horas do dia seguinte. – Claro, meu bem, você está estressado,
precisa descansar. Estava resolvido: aquela entrevista com Hartmann poderia bem
ser útil para garantir a defesa de seu marido. Não tinha a menor ideia de como
isso aconteceria, mas se acreditasse firmemente, quem sabe, estaria decidindo a
sorte deles dois.
17
Revendo a papelada e os artigos
sobre o desastre do estádio, Cosme se deparou com o nome de Antônio Malafate,
autor do primeiro parecer que Mônica havia conseguido sobre a culpabilidade de
Munhoz naquela história mal engonçada. – Vou falar com esse cara, declarou, e
saiu do escritório de Pôncio sem fazer qualquer ruído, mesmo quando abriu e
fechou a porta. Ele anda como uma sombra, pensou o jornalista, sorrindo. Tinha
aprendido a estimar aquele caboclo intuitivo, inteligente e discretíssimo, que
já considerava um amigo.
Estirou as pernas sob a
escrivaninha e jogou a cabeça apoiada nas mãos para trás, um gesto muito
peculiar que repetia quando precisava pensar em alguma coisa que exigisse
abstração do resto. Na verdade, duas coisas dividiam agora suas preocupações –
a ameaça de uma sanção injusta, como se veem tantas nesta terra, e o vago
mal-estar que percebia dentro de casa. A primeira questão estava em boas mãos,
e só lhe restava esperar que o detetive, o Castro, as testemunhas e os amigos
conseguissem as condições para enfrentar com vantagem o poder do dinheiro e do
que considerava a podridão moral de seu adversário. A morte de Mônica Lessa, na
flor da idade, havia de comover as pessoas e comprometer aquele crápula. Não
lhe restava a menor dúvida sobre quem fora o mandante – ou até o próprio
assassino.
Quanto à segunda questão, o
relacionamento com Larissa tinha de novo mergulhado numa espécie de limbo.
Talvez o motivo fosse só a pressão dos últimos meses, aquele turbilhão de
acontecimentos em que tinha se envolvido por causa de uma inocente reportagem.
Ela bem que tinha tentado reavivar o desejo de antes, e ele lhe era grato por
isso. Tinha realmente sido um apoio e uma alegria retomar aquele amor, mas
agora o tempo do amor parecia muito distante, as coisas caminhavam para um
estado pantanoso, e tudo que conseguia encontrar dentro de si era um tédio que
não predizia nada de bom.
Enquanto Cosme se punha em campo
para descobrir o paradeiro de Malafate, ia pensando nas chances de seu cliente.
Nada de muito promissor lhe chegava quanto às providências já tomadas. As
testemunhas estavam sendo instruídas pelo Castro, mas o detetive sentia necessidade
de um contato mais intenso com essas pessoas. Tudo lhe parecia ainda meio
solto, e não poderia confiar cegamente na disposição de alguém que conhecesse a
situação, sabendo da força política e econômica do senador.
Não saberia explicar bem por quê,
mas o nome de Antônio Malafate lhe dizia alguma coisa ainda obscura. Precisava
descobrir a razão de o antigo colega de Mônica ter se decidido a colaborar com
ela contra Lauro Munhoz. Podia ser que se tratasse de um ingênuo ou de um
sujeito predisposto contra o ex-prefeito para quem trabalhara. Nesse último
caso, devia ser também um indivíduo corajoso ou ligado a algum grupo que lhe
desse apoio, o que era mais provável. Munhoz contava com inimigos aos montes,
mas sua força política e seu mau caráter mantinham à distância os desafetos. A
não ser que – só mesmo cara a cara é que vai ser possível avaliar a situação,
pensou, estacionando seu velho Passat a alguns metros da companhia em que
Malafate trabalhava. Era uma empresa pequena num edifício novo da Glória, de
poucos empregados, prestadora de serviços de tecnologia e informática, segundo
o pequeno letreiro no portão.
Larissa apareceu em casa de Líria
de surpresa, no momento em que a amiga saía para o trabalho. – Nossa, que foi
que houve? Você está com cara de quem viu um fantasma; olhou com atenção para a
visita e completou – um fantasma alegre. – Quase isso, a outra respondeu.
Podemos almoçar hoje lá naquela cantina perto do teu trabalho? – Claro, vamos
sim. Ando até querendo acertar a conversa com você, saber como vai o estresse
do Pôncio. – Ah, ele está bem, mesmo dentro dessa situação toda, você sabe. O
Pôncio é um cara metido a forte, não entrega o jogo assim. Havia um toque de
impaciência na voz da outra, um pouco de ansiedade, mas sua expressão era quase
radiosa. Por isso Líria se encaminhou para a cantina certa de que haveria
novidades, e nem se surpreendeu quando Larissa, mal tocando no prato, anunciou
que estava se sentindo como uma adolescente que vai ao encontro do primeiro
namorado.
Depois que a amiga se foi, sem
sobremesa nem café, Líria ficou pensando no resultado daquilo. Que maluquete.
Uma mulher tão louca pelo marido, os dois filhos adolescentes em casa, e ela
inventando álibis para encontrar com um cara que acabara de conhecer, e ainda
se dando ao desplante de afirmar que dele podia vir a salvação para Pôncio. A
coisa devia ser mesmo muito forte. – Mas você pretende subornar o tal Hartmann
pra conseguir apoio da polícia federal? A pergunta era um tanto irônica, porque
para Líria aquilo não passava de uma desculpa esfarrapada para ir ao encontro
do tal Roberto. Na verdade o verbo que lhe ocorrera nem era subornar, mas não
queria dizer nada que pudesse agredir a amiga ou a reprimisse naquele momento.
Imaginou que talvez Larissa
tivesse atingido o limite da tolerância em relação à suposta indiferença de
Pôncio. Às vezes não depende da gente, as coisas fogem ao controle, e nadando
naquela baía de carência, podia ser que a atenção de outro homem – por
coincidência tão atraente e interessado nela – fosse um remanso, um consolo, um
elemento de reconstituição da auto-estima, quem sabe. De qualquer modo, um jogo
arriscado, que tanto pode salvar um casamento como afundá-lo de vez. Suspirou
como quem aceita o fato consumado e foi pagar sua conta dupla, ao mesmo preço
de sempre, porque Larissa trouxera para a mesa um prato quase vazio.
Pôncio reagiu com surpresa ao
fato de chegar ao escritório de Cosme – uma salinha antiga que alugara na Lapa –
e encontrá-lo embevecido, ouvindo bem baixinho uma música que, chegando mais
perto, identificou como o Adagietto da quinta sinfonia de Mahler. O detetive
lhe fez um sinal para que esperasse um pouco. Um minuto depois a música
terminava e ele se dirigiu ao outro com a mesma cara de sempre. – Não conhecia
esse seu lado amante da música. E que música! Você é mesmo um cara diferente.
Cosme abriu aquele sorriso ofuscante que lhe iluminava toda a cara morena e arredondada,
a despeito da magreza de seu corpo. – Ah, a música é um refúgio no meio do
dia-a-dia. Se a música não existisse, a vida seria ainda mais difícil de viver.
– Por que você acha a vida difícil? Pôncio quis saber, com genuína curiosidade.
Sempre achei, pela sua cara serena, que você era um cara zen e cheio de paz
interior. – Nem sempre a cara diz a verdade, Cosme respondeu, com o olhar um
pouco mais pensativo que de costume. Há umas coisas que nem a paz interior
ameniza. Pôncio ficou calado, esperando o resto do discurso, que não veio.
— E então, conseguiu falar com o
amiguinho da falecida? – indagou, desistindo de interrogá-lo sobre assuntos
mais pessoais. O outro balançou a cabeça com uma cara de profunda preocupação.
E como não repondesse diretamente à questão, o jornalista quis saber mais.
Cosme positivamente não devia estar num bom momento, porque se limitou a
levantar os ombros ossudos e continuou calado, oferecendo-lhe um copo dágua
apenas através de gestos. Pôncio então desistiu da entrevista e achou melhor
voltar para o escritório, onde o esperava uma coluna por escrever e a
correspondência do dia, que não poderia ser negligenciada numa hora daquelas. –
Te ligo depois, disse, ao que o outro respondeu – vou ligar pra você assim que
tiver certeza.
18
A atitude do detetive não saía da
cabeça de Pôncio, que à noitinha comentava seus motivos possíveis com Loredo e
o Castro. – Pode ser que tenha descoberto alguma coisa importante, e esteja
economizando palavras para não desperdiçar assunto. É bem a cara dele. – Tomara
que sim, augurou o redator-chefe. Começo a achar que esse cara é um detetive sui generis, um profissional muito
competente, com certeza, mas dotado da intuição de um sensitivo. A maneira como
ele age é fora do normal. Parece que fareja as coisas, tira conclusões no ar,
inesperadamente. E ainda não peguei um erro nas conclusões que ele tira.
Castro concordava com o chefe,
mas logo a conversa seria interrompida por um telefonema anônimo, rápido e
agressivo, em que uma voz de homem dizia, escandindo as sílabas, – podem
escrever. Se o puto do Munhoz não for pra cadeia, vocês vão se ver comigo.
Castro tinha grampeado os telefones da redação e o do escritório de Pôncio para
chamadas de fora. – Vamos achar esse desafeto do senador, disse. Depois ligou
para Cosme, que respondeu laconicamente já saber da chamada e de quem provinha.
– Para isso é um detetive, comentou Loredo, um pouco decepcionado com a
ingenuidade do Castro, ao mesmo tempo em que ruminava sua própria surpresa.
Hartmann e Larissa, que já tinham
tomado um café dias antes, conversavam de novo, no mesmo lugar, sobre o imbroglio em que o marido dela se
envolvera e as possibilidades de defesa e absolvição, que ele não julgava
difícil de conseguir. A postura dela era a de uma esposa preocupada, e a do
comandante parecia expressar apenas solidariedade e atenção. Entre as palavras
que trocavam, no entanto, havia certa eletricidade que os olhos às vezes
confirmavam, sem que nenhum dos dois fizesse um gesto fora do ritual da
amizade. Até o momento em que Roberto – assim ele queria ser chamado – deixou
escapar, ninguém poderia dizer se intencionalmente ou por um desses lapsos que
nos denunciam sem querer, mas morrendo de querer, que os olhos dela lhe
pareciam tão cheios de vida que o deixavam meio tonto.
Seguiram-se uns segundos do mais
intransponível silêncio, em que ambos pareceram petrificados, e depois Larissa
riu um risinho meio constrangido – imagina, como você é gentil, e pegou a bolsa
para deixar uma nota sobre a mesa. Ele porém se adiantou e foi até o balcão
pagar a conta. Antes de se despedirem, na porta do café, ele beijou sua mão bem
de leve, com ar grave. – Eu gostaria que a gente pudesse se ver de novo. Acho
que é preciso examinar melhor essa questão que o Canhedo colocou e que ficou um
pouco – Larissa porém parecia bem apressada, e desceu os três degraus com um
sim de cabeça, sem olhar de novo para ele.
Como se adivinhasse, Pôncio
chegou mais cedo e a encontrou diante da bancada da cozinha temperando uma
salada para o jantar. Os meninos tinham viajado com a família de um colega de
Cinho para um fim de semana na praia.
Larissa remoçara. Parecia mais
ágil, a cara meio marota. Estava mais esguia, a cintura dengosa, os seios
querendo furar a blusa fina. Tinha o rosto corado, quente, e quando o marido se
aproximou para beijá-la como há muito não fazia, tudo escureceu aos olhos dela.
Um desejo quase doloroso tomou conta de Pôncio, e ela nem pensou em resistir
quando a levou para o quarto, enganchada a seu corpo, e o líquido quente
escorreu pelas pernas do dois ainda a caminho da cama. Lembraria mais tarde de
ter chorado e suplicado coisas muito loucas, da sensação inexplicável e nova de
um prazer de aniquilação, de ter pedido para morrer por suas mãos, e das vezes
em que o gozo voltaria a pulsar em cada um de seus órgãos, as cabeças como se
estivessem prestes a explodir, pontos luminosos percorrendo os olhos. Houve um
momento em que Pôncio teve medo da violência que os dominava como uma força
independente injetada no sangue.
Adormeceram quase sem sentir,
como se a vida tivesse se esgotado neles. Ficaram assim, encaixados um no
outro, até o dia seguinte, que era um sábado. Acordaram depois do meio-dia, e
um beijo intenso misturou seus dentes e as línguas, os lábios prestes a se
fundir, até que ele deslizou para dentro da mulher, e ternamente se deixou
ficar assim, à luz do sol que vinha da janela. – Não quero levantar, ele disse.
Não quero sair daqui. Quero te curar das maldades dessa noite, e a abraçava,
acariciando sua pele, protetor, beijando as marcas em seu pescoço. – Então
fica, ela respondeu, toda entregue, sentindo as asas se agitarem de leve. É
tudo que eu mais quero, completou, enquanto o voo batia mais forte e ela gemia
baixinho, alagada de prazer. Dormiram de novo até que a tarde já ia alta e
sentiram fome. Na bancada da cozinha, uma salada pronta os esperava.
Aproveitaram a ausência dos
filhos para ir dançar e entraram pela noite em uma boate da moda, rodeados de
jovens, à luz frenética que piscava sobre eles, e tudo lhes parecia uma delícia.
De lá saíram para namorar à beira-mar, quase de manhã, e tomaram café em frente
à praia. – O melhor café de minha vida, disse Pôncio, e era sincero. – Da minha
também, ela respondeu, e ficaram os dois perdidos nos olhos um do outro. –
Sabe, fala sério, você não acha muito louco esse nosso caso sem começo nem fim?
– Sabe o que eu acho? – ele disse, junto ao ouvido de Larissa. Acho que você
encontrou a palavra certa. Nós temos um caso que nem o casamento consegue
atrapalhar. Voltaram para casa em estado de graça, ela deitada ao colo dele. –
Se um guarda nos pega, você perde a carteira, ela disse, rindo. – Abençoados os
guardas que dormem na manhã de domingo, ele respondeu, dirigindo com uma das
mãos.
A segunda-feira se anunciava por
uma chuva forte que engarrafou o trânsito e atrasou boa parte dos alunos da
escola dos meninos. Ao volante, Pôncio ligava para a redação, mas o celular
funcionava mal, e ele acabou desistindo. Achou melhor relaxar um pouco. Tinha
um dia imprevisível pela frente, não valia a pena perder a cabeça. Ficou
olhando a chuva e conversando com os filhos até que a fila de carros e ônibus
começasse a se deslocar. O tempo dera uma pequena trégua, mas quando os dois
saíam do carro o vento recrudesceu. – Liguem pra casa, se não conseguirem sair
na hora, gritou. Não deixem a mãe preocupada. Eles levantaram os polegares,
correndo para dentro. Enquanto dava saída ao carro, teve a impressão de que
alguma coisa dentro de si estava forçando seu peito, atravessada à respiração.
19
Não houve novidades na segunda
nem nos outros dias da semana. Ele sentia os nervos à flor da pele, chegava
sempre exausto em casa. Larissa preparava seus pratos prediletos, trazia filmes
que às vezes partilhavam com Líria e Laio, massageava os músculos tensos de seus
ombros e aparecia de vez em quando no escritório para um café feito na hora ou
um lanchinho gostoso. Numa dessas tardes amaram-se no sofá da sala de trabalho,
“para exorcizar os fantasmas”, e em casa, nas duas noites em que ele não
conseguiu pegar no sono, reeditaram a festa da madrugada do sábado anterior em
versão um pouco menos extensa. No sábado seguinte, tinham um convite para
jantar em casa do Canhedo na companhia do que passaram a chamar a turma do
Pôncio. Para alívio e preocupação dela, Hartmann não apareceu. Temia tê-lo
irritado, e que isso pudesse azedar a atuação do comandante quanto a Pôncio.
Nunca se sabe como vai reagir um homem nesses casos.
Em compensação, Cosme apareceu no
velho Passat branco e parecia contente, a julgar pelo sorriso com que entrou no
galpão, bem na hora em que saía do forno um enorme dourado todo enfeitado e a
mesa se completava ao som das vozes animadas por cerveja gelada e vinho branco.
Aproximou-se de Pôncio e entregou-lhe um relatório em que dava conta de algumas
conclusões animadoras: conseguira provas da culpa de Antônio Malafate quanto à
morte de Mônica Lessa, o que surpreendeu o jornalista, certo de que essa culpa
recairia sobre Lauro Munhoz. Mas não era só isso. Contou-lhe que agora não
havia dúvidas, e três testemunhas estavam dispostas a desmascarar de vez o
ex-prefeito com provas irrefutáveis de sua responsabilidade no caso do estádio,
o que lhe valeria uma acusação de homicídio culposo de centenas de pessoas.
Alguns documentos dados como perdidos – evidentemente com a intenção de abafar
o caso e de jogar poeira nos olhos dos encarregados – tinham sido guardados por
funcionários ressentidos, e agora ressurgiam, na hora em que eram bem oportunos
para incriminar Lauro e livrar Pôncio da suspeita de calúnia.
Diante disso, o jantar foi um
sucesso absoluto, Cosme foi carregado pelos amigos e o vinho e a cerveja
rolaram um pouco além da conta, de modo que os dois casais e os meninos de
Larissa e Pôncio aceitaram o convite do Canhedo para dormir em sua casa. Ainda
não eram duas horas quando Cosme voltou para casa (nunca bebia nada que tivesse
álcool), assim como o Castro e o redator-chefe, praticamente vizinhos do
Canhedo. Os quatro entraram nos quartos depois das três horas, ainda cheios de
alegria, e mesmo cansados continuaram a conversa. Os meninos tinham caído no
sono pouco mais de meia-noite, de modo que havia a chance de um joguinho rápido
e algumas piadas para aproveitar a distensão do momento.
Alguém pensou em uma nova
experiência, mas não chegou a pôr em palavras a sugestão. Haveria na certa
sérias restrições, e talvez até a amizade dos quatro sofresse com isso. Além de
tudo, o cansaço e o que restava dos vapores em suas cabeças não deixavam muita
energia para outra alternativa que não fosse dormir. Mas a ideia ainda vivia;
em sonho, Laio os olhava de fora e via os quatro, incluindo ele mesmo,
envolvidos em abraços e carícias como uma ninhada de gatinhos. No meio do
suingue, Pascal aproveitava o calor dos corpos e lambia os bigodes com os olhos
azuis brilhando.
A festa de sábado entrou pelo
domingo de praia e almoço num restaurante do Leblon. Ninguém mais pensava nos
problemas legais, mas Pôncio ainda não estava tranquilo. Nem podia. Era cedo
para se julgar livre de encrencas. Tinha razão: Lauro Munhoz procurou por ele
na terça, queria conversar e se recusava a encontrar com o jornalista em outro
lugar que não fosse seu gabinete particular no Rio.
Uma crise de desalento o dominou
tão completamente que foi preciso procurar o Castro e o detetive – que não
conseguiu encontrar – para ouvir deles os motivos que poderiam funcionar a seu
favor nesse encontro. Queria se ver livre daquilo tudo, e preferia partir já
com as falas decoradas, como se fosse atuar num palco. – Você tem o direito de
levar o advogado a tiracolo, opinou o Castro. – E se ele não aceitar? – Que se
dane. Se o interesse do encontro é dele, por que não aceitaria? Já está impondo
condições demais, com essa história de exigir que o papo seja em seu
escritório. – Acho que o Castro tem razão, disse Loredo, que chegara no início
do encontro e fora chamado pelos dois. E pode ir começando a sacudir essa coisa
que está te empurrando pra baixo, não há motivo. Que cara é essa, medo do
Lauro? – Aliás, você só vai a esse encontro se quiser, acrescentou o advogado.
E uns segundos depois, – eu nem aparecia lá.
Pôncio criou alma nova. Rever
Lauro, depois daquilo tudo, era um saco. E ainda por cima no lugar escolhido
por ele, seu ninho de senador corrupto e arrogante. Ele sim, devia estar
deprimido e preocupado. Saiu da redação mais cedo, passou no escritório para
pegar o pendrive com os arquivos do
livro e da coluna do dia seguinte, e seguiu para casa levando um vinho da adega
da esquina e umas flores para Larissa.
20
Em sua sala, Cosme ruminava
hipóteses fantasiosas em torno de uma história real. Ouvia um concerto para
violino e celo, tão baixo que dificilmente alguém além dele seria capaz de
ouvir. Um ouvido de tuberculoso, como dizia seu pai. Sorriu de leve, lembrando
o velho de quem herdara o nome, e apenas um músculo da face esquerda se movia,
quase imperceptível. Seu pai tinha sido um político atuante, de grande
prestígio, responsável por uma mudança radical na câmara estadual e por um
período brilhante na administração do Amazonas. Infelizmente, essa fase marcada
pela lealdade e por uma justiça digna do nome, mas que durara bem pouco. Não
lhe faltavam inimigos, gente insatisfeita, que precisava das sombras que ele
dissipava com sua retidão; gente que precisava do contrabando, do tráfico de
drogas e da prostituição para manter o poder econômico e o prestígio.
Pouco depois do assassinato do
velho deputado, sua família precisou fugir às pressas, de madrugada, num barco
em que levavam o necessário para a viagem e alguma roupa. Ficaram em Manaus a
casa espaçosa construída pelo avô, as cabeças de gado e as criações, os
empregados que nem ao menos conseguiram indenizar decentemente. Lembrava
daquela noite como de um pesadelo. Tinha deixado pela metade um doutorado em
ciências políticas e trazia consigo seus diplomas, um pouco de dinheiro achado
no cofre e algumas jóias que acompanhavam a família há três gerações. Quase
nada, levando-se em conta que vinham para o Rio de Janeiro sem saber ao certo a
quem iriam recorrer. A mãe e a irmã pouco falavam desde a morte do pai, e a
angústia delas lhe dava forças para enfrentar a situação.
Na agenda do pai, tinham
encontrado dois endereços de conhecidos no Rio. Um deles, antigo colega de
universidade, não morava mais no lugar anotado. O segundo era o Castro, filho
de outro deputado do estado, que estudara e se formara no Rio. Deviam ao Castro
o quarto de hotel em que se abrigaram no início de sua estada na cidade e as
primeiras refeições sólidas daqueles dias. Também deviam a ele, embora em outro
contexto, o casamento de sua irmã com um amigo do advogado, viúvo havia cinco
anos. Castro não os apresentara com segundas intenções, tudo fora obra do
acaso, e Cosme gostava de repensar aquela história, que lhe soava um pouco
romanesca, além de ter dado uma última alegria a sua mãe, já muito doente.
Pensava na beleza um tanto
melancólica daquele encontro entre a cabocla esguia e muito jovem, meio
assustada com a cidade desconhecida, e o homem dezoito anos mais velho que ela,
de ar um pouco triste e coração generoso, que se dedicara a Maria Rosa como a
uma filha. Ele a reconduziu ao curso interrompido pela fuga de Manaus e ajudou
a firmar sua carreira de juíza. Independente e desenvolta, a moça era agora
dona da própria vida e objeto de uma paixão que deixava o irmão detetive um
pouco apreensivo, porque conhecia bem demais a natureza humana e o ciúme do
cunhado lhe parecia excessivo. Enfim, o jogo estava feito e cada um seguia seu
rumo de um modo que deixaria o pai orgulhoso.
O relógio da sala ainda bate as
horas, mas Pascal já não pula de susto a cada badalada: limita-se a levantar as
orelhas e olhar com certo enfado aquela coisa que interrompe seus cochilos e o
distrai da bolinha que perseguia. Líria está atarefada em sua sala, na empresa
onde trabalha, às voltas com alguns casos complicados de férias atrasadas e
reivindicações que é preciso analisar com cuidado. Tem pressa. Daqui a uma ou
duas horas espera a chegada de Pôncio, que iria passar pela rua da empresa e
tinha se oferecido para levar-lhe uns documentos esquecidos em casa pela manhã.
Um bom amigo, sempre disposto a ajudar.
Abanou a cabeça, lembrando do
mal-entendido do ano passado. Agora podia rir daquela bobagem e da chateação
que lhe causara. Na verdade, nem lembrava mais, e por associação pensou na
maldade que tinha feito com ele, tentando atrapalhar a reportagem sobre o
estádio do Rio Comprido. Seu sorriso se alargou e ela imaginou se algum dia
seria capaz de confessar aquilo. Mas que nada, ficava uma coisa pela outra,
estavam quites, e agora eram de novo grandes amigos.
O livro de Pôncio tinha sido
lançado na semana anterior, numa festa cheia de gente, um sucesso absoluto.
Ainda mais que o mandato de Lauro Munhoz tinha sido cassado e ele respondia por
seus crimes na justiça comum – uma grande vitória, num país onde os poderosos costumam
escapar da punição por seus crimes. A mídia entronizara o jornalista como herói
da pátria. Todo mundo queria entrevistá-lo, seu livro encabeçava a lista dos
mais vendidos pela segunda semana e Larissa estava grávida. Pôncio não cabia em
si de contentamento, e esse estado beatífico o tornava ainda mais amável que de
costume.
Chegou à empresa lá pelas quatro
e meia, quando Líria e Marlon tomavam o café de praxe na cantina. – Venha tomar
um café com a gente, Pôncio, ela disse, levantando-se para beijá-lo e
apresentando-o ao colega e seu amigo. Não notou a expressão do outro, mas
estranhou que ele não tivesse aceitado o convite e logo que lhe entregou os
papéis tivesse se despedido de um modo que lhe pareceu meio brusco. – Vai ver
ele está cheio de trabalho, não esquenta, disse Marlon, terminando seu café.
Trouxe o que você pediu, não trouxe? Então, mulher, o que você queria mais?
Líria deu de ombros e os dois voltaram ao trabalho.
Pôncio no entanto entrou no carro
incomodamente contrariado. Tinha reconhecido no colega de Líria o sujeito que
afinal causara tanto mal-estar entre eles e quase dera fim ao casamento de
Laio. Então era ele, ainda? Passou o resto da tarde perturbado com a ideia de
que afinal estava certo. E tanto isso o incomodou que procurou por Cosme, a
essa altura já envolvido em outro caso. Precisava ter certeza. Não aguentaria
continuar convivendo com os amigos sabendo daquilo, ainda que fosse difícil de
acreditar que – queria saber de tudo, fosse qual fosse o resultado. – Não é
todo dia que se encontram amigos iguais a eles, explicava ao detetive. Quero
saber toda a verdade, aconteça o que acontecer. – E pretende reeditar sua
atuação do ano passado? – quis saber Cosme, meio preocupado com o resultado da
investigação. Não prefere acreditar que tudo não passa de coincidência? Se ela
fosse culpada do que você imagina, não acha que seria meio estúpido ter te
apresentado ao cara?
Cosme, como sempre, tinha razão.
Mas Pôncio tinha uma cabeça obstinada e, ainda que não pretendesse repetir o
que tinha feito antes, queria tirar tudo a limpo. Assim, quinze dias depois ele
recebia um relatório completo a respeito do belo rapaz com quem Líria, todos os
dias úteis, repartia uma mesa da cantina. Assim ficou sabendo que Marlon dos
Santos Macieira Lima frequentava algumas vezes por semana motéis como o Mon
Bijoux em companhia de um parceiro – nem sempre o mesmo, mas quase sempre um dos
três cujos nomes vinham listados abaixo. Havia ainda, mais raramente, uma
parceira eventual, de nome Ana Rosa Araújo Alcino.
Agora Pôncio, que respirara aliviado
com a notícia, tinha outro dilema – contar ou não contar à amiga o que tinha
descoberto sobre seu amigo. Larissa tentou em vão convencê-lo de que chegava
uma fofoca, e que duas talvez Líria não lhe perdoasse, mas era mais forte que
ele, e achou um jeito de explicar à amiga quem era aquele sujeito tão simpático
com quem ela tomava cafezinho todo dia.
Surpreso, viu Líria rir muito
dele, confirmando alegremente que Marlon era gay, sim, assumidíssimo, e também um ótimo rapaz, colega exemplar,
um cara leal e um papo maravilhoso. Meio desconcertado, sorriu amarelo e achou
melhor encerrar o assunto, mas antes queria saber por que de vez em quando ele
preferia a companhia de uma mulher. – Ah, é uma longa história, ela explicou.
Ana é apaixonada por ele, acha que pode despertar o príncipe encantado que ele
não sabe que é. Não há o que tire isso da cabeça dela. – Mas que bobagem, ele
comentou. Essa moça está perdendo tempo, se iludindo atoa. – Pois é, comentou
Líria, com um jeitinho coquete. Eu já disse isso a ela, mas – claro, claro, não
se pode interferir nessas coisas, ele disse.
Despediram-se calorosamente, e
mais tarde ele engrandecia o espírito delicado de Líria, capaz de compreender e
manter a amizade com um cara de vida assim complicada. Larissa não disse nada e
mudou de assunto.
Em casa, enquanto esperava a
chegada do marido escovando de leve o pelo de Pascal, Líria revia a experiência
de uma tarde em que decidira aceitar um convite de Marlon, ardendo de
curiosidade sobre o que ele chamava surtos hétero. Para se proteger, usara o
carro e o nome da amiga solteira – também parceira dele de vez em quando – e
criara um laço novo em sua vida, do qual ninguém deveria ficar sabendo. Muito
menos um sujeito intrometido como aquele amigo, que no entanto a enternecia com
sua dedicação paternal. O que não impedia que, uma ou outra vez,