O ruído do mar batendo nas pedras
chamou a atenção de Pôncio e o fez caminhar até a janela do escritório.
Alarmou-o um pouco a extensão da ressaca, a água lambendo a calçada e chegando
ao meio da avenida, atrapalhando o trânsito pesado que àquela hora rumava para
o centro da cidade. O tsunami passou-lhe pela cabeça, engolindo carros e
prédios, e imaginou seu quinto andar inundado, os móveis batendo uns nos outros
e uma banhista de fio dental jogada no meio da sala. Voltou para o computador e
acendeu o segundo cigarro do dia. Olhou a foto de Larissa, sua mulher, e virou
o retrado para que não o visse fumar. Tinha mentido, e ela acreditara; mas deixar
o cigarro ia ser uma batalha mais dura do que poderia parecer à primeira vista.
Ainda mais ansioso como estava, de viagem marcada justo para aquela tarde de
ventania. Por essas e outras achava a natureza a coisa mais besta que existe,
um dado perfeitamente dispensável na vida de um ser civilizado e operante, que
devia dispor de seu tempo sem maiores tropeços. Já chega o corre-corre
necessário para que se consiga algum avanço na vida.
Faltava fechar a coluna da
primeira edição do dia seguinte. Passava os olhos nas notícias do dia e a
chamada para a seção do final do primeiro caderno o fez parar. À medida que ia
lendo, uma ideia original – ou mais ou menos isso – foi surgindo. Pensou que
seria interessante ressuscitar aquela história trágica do estádio de futebol
que ruíra dez anos antes, quando exibia um show beneficente de cojuntos e
cantores famosos, e matou perto de mil pessoas, incluindo vários artistas, que
ganharam fama de quase mártires por conta disso. Quando mais não fosse, a
reconstituição podia render algum ensinamento para as autoridades de agora,
sempre negligentes com o Rio e sua população sofrida. Na época, ninguém soube
explicar bem o que havia causado o acidente. A perícia não atinara senão com
hipóteses que pareciam irreais – ferrugem e desgaste dos vergalhões já antigos,
cupim no cimento sem manutenção – mas nada ficou definitivamente provado.
A empresa construtora já não
existia, o estádio tinha mais de 50 anos e ninguém foi considerado culpado. Nem
ao menos se apontou um responsável de quem se pudessem cobrar as indenizações.
Os costumes civis ainda não haviam incorporado com tanta ênfase essa
mentalidade indenizatória das décadas seguintes, e raras vezes alguém se
lembrava de cobrá-las em situações do tipo. E quando isso acontecia, o reclamante
não teria tanta chance de ser bem-sucedido. A prefeitura alegava que o estádio
estava em bom estado, que não havia qualquer sinal de desgaste ou perigo à
vista. Tudo fora súbito, inesperado, sem dar tempo para que o povo esvaziasse o
lugar. Alegou-se vagamente um excesso de peso e movimento nas arquibancadas,
hipótese que terminou esquecida, diante da extensão do desastre. O número dos
mortos chocou a cidade, e o caso teve repercussões muito negativas fora do
Brasil. Isso também justificava uma revisão do episódio todo, que poderia valer
por uma tomada de consciência, uma catarse que soaria simpática à mídia de um
modo geral e ao estrangeiro em particular. Pelos seus cálculos, era um feito
jornalístico que, bem conduzido, podia mesmo lhe render algum prêmio ou ao
menos menções de mérito.
O diabo era começar. As provas,
se é que tinham existido, estavam enterradas com as vítimas, e duvidava que
alguém de algum modo ligado ao fato se prestasse a falar ou apontar testemunhas
e documentos. Seria preciso peregrinar pelas redações, arquivos e bibliotecas
em busca de artigos, entrevistas, reunir todas as notícias e notas dos jornais
e revistas da época. Uma lenha que, Pôncio sabia bem, não garantia retorno satisfatório
e talvez ainda fosse lhe arranjar algum inimigo insuspeitado, filho ou herdeiro
político de pessoas envolvidas na história.
Então lhe veio uma ideia que à
primeira vista cintilou em sua mente como um diamante de muitos quilates: ia
pedir a colaboração dos leitores. Há um grande número de pessoas ávidas de
evidência, para as quais aparecer no jornal – e até num livro, como estava em
seus planos – era uma perspectiva capaz de produzir verdadeiros milagres. No
caso do estádio, ele sabia, a notabilidade dos envolvidos seria limitada a um
breve espaço de tempo, mesmo que a campanha tivesse o êxito que ele desejava.
Mas o povo quase sempre anda insatisfeito com seus homens públicos. Haveria um
ambiente favorável a desenterrar culpados, mesmo de anos passados, apontar a
desídia dos governantes como uma tendência de nossos políticos e até do pessoal
do judiciário. É mexer com casa de marimbondo, mas pode render bons frutos,
além de algumas ferroadas.
Dirigiu-se eufórico ao computador
e redigiu uma coluna cheia de ardor cívico – que até precisou refrear um pouco,
porque hoje em dia ninguém acredita em arroubos de entusiasmo. Menos, Pôncio,
pensava enquanto seus dedos corriam céleres pelo teclado, menos. Concitou os
leitores (sabia que eram muitos) a contribuírem para a elucidação definitiva
daquele acontecimento, uma mancha na reputação da administração da cidade,
herança infausta (não, infausta não, ninguém sabe mais o que isso quer dizer)
herança sombria (sombria está na medida) que há décadas dá motivo a dúvidas
sobre as melhores intenções e possíveis virtudes de nossos governos municipais
e, de certa forma, estaduais, já que ninguém se preocupou em investigar a fundo
a questão, para tirar dela as possíveis lições.
Leu e releu, corrigiu aqui e ali,
tornou a ler e reler e colocou enfim o parágrafo final, que dizia: deixo meu
e-mail à disposição dos leitores para que contribuam com sua opinião sobre o
caso, detalhes que tenham ficado marcados em sua memória. Colaborem no
esclarecimento desse espisódio que até hoje nos envergonha e ajudem a evitar
que no futuro isso se repita e vitime, quem sabe, parentes ou amigos daqueles
que me leem ou os meus próprios. Nisso, podemos estar unidos. Se você que me lê
souber de algum detalhe, mesmo já ventilado na época, envie sua mensagem. Caso
não lembre de algum pormenor, fale de sua impressão e de como o caso repercutiu
entre seus parentes, amigos e conterrâneos. E se conhecer alguém ligado ao fato
– vítima, parente ou conhecido que tenha presenciado o acidente – não deixe de
relatar suas opiniões e os fatos de que se recorda. Vamos trabalhar em conjunto
e mais tarde teremos a alegria de ver o resultado de nossa pesquisa. Conto com
você, caro leitor, sem o qual um jornalista é apenas um cronista solitário.